domingo, 20 de março de 2022

O socialismo de Paul Singer e os limites de seu projeto político de economia solidária

 por Bárbara Geraldo de Castro[1][2]
ensaio em PDF/2010

Paul Singer (1996, 1998, 1999) define a economia solidária como outro modo de produção, diferente do capitalista e que leva à sua superação. Mas nem sempre foi assim[3]. Inicialmente, ele defendia a economia solidária como uma alternativa ao desemprego e parte de um programa maior de mudanças. Aos poucos, essa proposta reativa ganhou um caráter combativo e universal: Singer passou a tratar a economia solidária como resistência dos trabalhadores ao capitalismo. É nesse sentido que entendo que a economia solidária defendida pelo autor é um projeto político. Para construí-lo, ele partiu de elementos de discussões teóricas (o socialismo utópico e a autogestão) e de experiências empíricas (a Sociedade dos Pioneiros de Rochdale e o Complexo Cooperativo de Mondragón).

Entendo, no entanto, que outros elementos sejam fundamentais para compreendermos a construção de seu projeto político. Além dessas referências teóricas e empíricas, necessárias para marcar o caráter científico do debate que realiza, sua biografia é indispensável para compreendermos sua concepção de socialismo e a maneira como ele pensa a superação do capitalismo. Este texto destaca esses dois elementos e busca mostrar quais são as limitações que eles trazem à construção do argumento do autor.

Uma breve biografia

Foi em meio à anexação da Áustria pela Alemanha, em 1932, que nasceu Paul Singer. Filho de família judia contemporânea à ascensão do nazismo, ele sofreu a perseguição dos agentes do regime ainda criança. Em 1940, com oito anos, logo após o início da 2ª Guerra Mundial, sua mãe fugiu com ele rumo ao Brasil.

É por meio da experiência do Holocausto que Singer se aproxima, em São Paulo, do Dror[4], um grupo político de jovens judeus socialistas sionistas[5] (PINSKY, 2000). Os militantes desse grupo se consideravam parte de um movimento no qual o pluralismo e a heterogeneidade de ideias tinham espaço e se colocavam tanto contrários aos revisionistas quanto aos comunistas. Aos primeiros, porque eram violentos e exortavam o terrorismo e chauvinismo antiárabe palestino; aos segundos, porque tanto a URSS quanto os partidos comunistas eram contrários ao sionismo e a Israel (PINSKY, 2000).

Ele se associou ao Dror aos 15 anos e atribuiu sua entrada no grupo mais à afinidade com o socialismo do que com o sionismo (PINSKY, 2000). Foi esse grupo que o levou a participar da construção do Kibutz Hachshará Ein Dorot[6], em Jundiaí (SP), no qual trabalhava nas atividades produtivas, aprendia a viver coletivamente, estudava hebraico, movimento sionista e cultura judaica e se preparava para a vida em um kibutz em Israel (LECHAT, 2004). Em entrevista a Lechat, declarou: “Isto foi o início da economia solidária. Não tinha este nome, mas a ideia era fazer um socialismo. Um socialismo na prática através do que chamaríamos hoje de uma cooperativa integral”. (SINGER apud LECHAT, 2004, p.171).

Para viver no kibutz, abraçou a recusa do grupo à vida universitária e se dedicou ao curso de eletrotécnica. Participou, também, do programa Ação Educativa, que tinha o objetivo de ampliar o alcance dos debates internos do grupo, dando aulas sobre a história do movimento operário e materialismo histórico. Foi, ainda, o principal protagonista dos questionamentos ideológicos pelos quais o grupo passou no início da década de 1950, desencadeando um racha em 1952, com sua declaração de saída do grupo, na qual dizia que o sionismo não fazia sentido, pois apenas o socialismo era capaz de garantir o bem-estar de todos os homens, incluindo as minorias (PINSKY, 2000).

Ao sair do Dror, Singer prosseguiu seus estudos em eletrotécnica e conseguiu emprego em uma indústria, na qual trabalhou entre 1952 e 1956. Nesse período, se filiou ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e, aos 21 anos, foi um dos principais líderes de uma das maiores paralisações da história do país. Em 1953, cinco categorias da indústria paulistana (metalúrgicos, têxteis, marceneiros, vidreiros e gráficos) ficaram paralisadas por cerca de um mês, mobilizando cerca de 300 mil trabalhadores (LECHAT, 2004; OLIVEIRA, 2003).

Um ano após a greve, em 1954, portanto, Singer teve seu pedido de naturalização aprovado e pôde se filiar ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) (OLIVEIRA, 2003). O partido, assim como o Dror também se posicionava contra os comunistas e o socialismo da URSS. Seu primeiro contato com a imprensa socialista e com os colegas comunistas começou, no entanto, em 1945, ano em que conheceu o médico Febus Gikovate, o jornalista Fúlvio Abramo, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, o advogado Antônio Costa Correia e o crítico literário Antonio Candido, com os quais formou um grupo de amizade que diz ter contribuído muito para sua formação política (LECHAT, 2004; SINGER, 1999).

A carreira acadêmica começou um pouco mais tarde, em 1956, quando ele ingressou na USP para fazer o Curso de Ciências Econômicas e Administrativas. É desta mesma universidade que ele se tornou professor, em 1960, integrando o grupo de estudos d’O capital junto com Artur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Otávio Ianni e Fernando Novais. Foi aposentado pelo Ato Institucional n° 5 em 1968 e ajudou na fundação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) que, em entrevista à Lechat (2004), comparou a uma cooperativa, pois havia uma caixa comum e todos ganhavam a mesma coisa.

Aqui, como quando fala sobre o Dror, Singer reafirma a narrativa de continuidade histórica que ele construiu sobre a economia solidária[7]. O kibutz de Jundiaí e a fundação e o funcionamento do CEBRAP são indicados por ele como momentos de sua história em que ele viveu a economia solidária – mesmo que, à época, não lhes atribuísse este nome. Essas experiências foram fundamentais para a formação política do autor. Sua vivência produziu um conhecimento sobre formas coletivas de gestão que vão aparecer e fundamentar a definição da economia solidária. Mas esta é uma etapa de sua história intelectual-militante que ainda está por vir.

Enquanto isso, Singer participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 e fez parte de sua primeira direção nacional. Participou também da redação do primeiro programa de governo do PT, quando Lula se candidatou ao governo do Estado de São Paulo, em 1982. Foi secretário de planejamento de Luiza Erundina durante o período em que ela esteve à frente da Prefeitura de São Paulo, entre 1989 a 1992, bem como o principal articulador de seu plano de governo, nas eleições municipais de 1996. Foi neste momento, aliás, que usou pela primeira vez o termo economia solidária, apresentando-o como uma maneira de enfrentar os elevados índices de desemprego, transformando os desempregados em microempresários ou autônomos (SINGER, 1996). Essa ideia o levou a se dedicar aos estudos do cooperativismo e práticas autogestionárias e, em 1998, inspirado pela experiência de formação de cooperativas populares pela Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE)[8], ajudou na fundação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da USP. Alguns anos depois, em 2003, quando Lula se tornou presidente da República , assumiu a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes). O órgão, ligado ao Ministério do Trabalho, foi criado naquele mesmo ano. Singer permanece na secretaria até o momento.

A concepção de socialismo de Singer

A postura antiautoritária, a vida em comunidade e a preocupação com a educação como instrumento de politização, como vimos, são elementos que acompanharam Singer no decorrer de sua vida militante e intelectual. Essas mesmas preocupações aparecem de maneira muito clara nos textos em que ele trata de maneira direta sobre aquilo que entende sobre socialismo[9].

Singer busca se diferenciar de outros socialistas e marca sua posição ao criticar o que avalia como a fragilidade e as consequências do projeto proposto por Marx e Engels. Para Singer (2000a), eles sofriam de um reducionismo teórico, pois a crítica que ambos realizaram do capitalismo como modo de produção, apesar de certeira, deixava muito a desejar. Sua discordância principal é com a ausência, nesses autores, de um delineamento da organização econômica, social e política do socialismo, ou seja, a ausência de um desenho da sociedade socialista e de suas instituições.

Além disso, Singer entende que o socialismo proposto por Marx e Engels nasceria da própria evolução contraditória do capitalismo, particularmente de sua fase monopolista, sendo resultado do antagonismo entre a organização da produção na fábrica individual e da anarquia da produção na sociedade. Essa contradição levaria à socialização das forças produtivas e o Estado ocuparia o papel de instrumento de apropriação dos meios de produção das classes trabalhadoras. A consequência desse processo seria o desaparecimento das classes sociais sem que fosse necessária a participação ativa dos trabalhadores no processo.

Para o autor, essa concepção do socialismo é insuficiente e deixa sem resposta as perguntas referentes à organização da sociedade socialista e às estratégias e fórmulas para sua transição. Além disso, para Singer, a teoria de Marx e Engels inspirou a URSS em seu governo socialista[10] levando a um crescimento monstruoso do Estado e não à sua abolição (SINGER, 2000a). A mesma postura perante o socialismo, diz Singer, foi adotada pela maioria dos partidos operários após a II Internacional e colocado à prova na Revolução de Outubro. Naquele momento, a grande discussão que se travou nos quadros bolcheviques era entre a autogestão e o planejamento centralizado. No primeiro caso, defendia-se que a expropriação dos meios de produção deveria ser seguida da efetiva direção coletiva dos trabalhadores. No segundo, a expropriação dos meios de produção era condição suficiente para a transição.

Os quadros bolcheviques que defendiam o planejamento centralizado venceram o debate e a principal consequência foi que o socialismo passou a ser caracterizado como:

[...] planejamento geral ou centralizado da produção; substituição do mercado pela alocação administrativa dos meios de produção; organização monopolista de todos os ramos de produção e fixação detalhada de metas para todas as empresas (SINGER, 2000a, p. 22).

O problema para Singer (2000a) é que apesar de concordar que sem a socialização dos meios de produção não há socialismo, ele entende que a participação dos trabalhadores é essencial nesse processo. Ele critica o planejamento centralizado, marca das experiências de socialismo real, porque a posse dos meios de produção e a centralização das tomadas de decisão pelo Estado levam a crer, em um primeiro momento, que os trabalhadores fazem parte desse processo – já que, em tese, cada cidadão seria proprietário dos meios de produção. Mas ele chama a atenção para a ficção jurídica que o fato esconde: “Na prática, o controle jurídico era exercido pela cúpula do partido, que também era a cúpula do Estado. E os trabalhadores continuaram tão subordinados quanto no capitalismo”. (SINGER, 2000b, p. 77).

A crítica ao socialismo soviético, como vimos, acompanhou a trajetória do economista no PSB e no grupo sionista Dror. A discussão realizada nestes dois grupos políticos dos quais Singer fez parte foram fundamentais para a sua formação intelectual e para a sua militância política. A postura que ambos os grupos adotaram contra o autoritarismo e as práticas stalinistas e a favor da liberdade de escolha dos indivíduos aparecem na concepção de socialismo proposta por Singer.

É por causa dessa preocupação que, em Uma utopia militante, Singer (1998) vai propor uma distinção entre os conceitos de revolução social e revolução política. A primeira refere-se a uma revolução de longo prazo e a uma transformação cultural protagonizada pelos próprios trabalhadores. A segunda limita as mudanças sociais a um único momento histórico: a tomada do poder – o que, em sua concepção é um erro.

Ao distinguir revolução social de revolução política, Singer (1998) se contrapõe à vertente dos revolucionários que se colocam a favor da ditadura do proletariado, e assim o faz porque ele a considera um procedimento autoritário. A distinção, que define o que foi a revolução social capitalista e o que é a revolução social socialista, também lhe serve para tomar como duvidosos os efeitos positivos de uma revolução política socialista. Para ele, enquanto as revoluções políticas burguesas – ou seja, as revoluções políticas capitalistas –, ajudaram a criar instituições jurídicas, políticas e sociais que condiziam, potencializavam e auxiliavam o desenvolvimento do capitalismo, podemos duvidar dos mesmos resultados provocados pelas revoluções políticas proletárias ou socialistas.

O resultado é duvidoso porque, segundo o autor, o processo da revolução social capitalista e socialista se dá sob uma dinâmica diferente: enquanto a revolução social capitalista se dá subordinada ao feudalismo, a revolução social socialista se inicia no século XIX implantando-se no capitalismo ainda em constituição, por meio de

[...] instituições destinadas a enfrentar e/ ou compensar as tendências de concentração de renda e da propriedade, de exclusão social e de destruição criadora, inerentes à dinâmica do capital. [...] Os implantes socialistas no capitalismo resultam de algo como um processo de tentativas e erros (SINGER, 1998, p.132).

É a partir dessas definições que podemos compreender por que Singer defende que a cooperativa assume características de uma empresa autogerida, é um implante socialista na sociedade capitalista e levará à transição para outro modo de produção[11]. A empresa autogerida, para ele, é a instituição possível no plano econômico atual, que vai contra a corrente das tendências capitalistas. Além disso, somente por meio delas é que podemos superar o fracasso das experiências de socialismo real. O autor defende que essas experiências foram resultado da revolução política socialista e que servem como contraexemplo: o controle dos meios de produção deve ser descentralizado e ficar sob o domínio direto dos trabalhadores, e devemos rejeitar o planejamento geral da economia (SINGER, 2000a).

A partir da recusa do planejamento geral, propõe como seria a organização socialista da produção. Ela deve seguir alguns princípios: todos os dos pioneiros de Rochdale[12]; a possibilidade de federação das empresas autogeridas; a ausência de trabalhador assalariado; criação de cooperativas de consumidores para evitar a competição entre as empresas autogeridas; liberdade de iniciativa de pessoas ou grupos com ideias ou projetos novos; financiamento por bancos públicos dos projetos que tenham relevância social (SINGER, 2000b). Para o autor, o problema do planejamento geral é que, ao impedir a liberdade de iniciativa, ele não permite o desenvolvimento do socialismo entre as bases.

Pelo fato de não haver permissão para que outro modo de produção competisse com o planejamento econômico centralizado, as iniciativas dos trabalhadores acabaram abafadas na URSS e legadas ao estatuto da ilegalidade. O sistema capitalista, ao contrário do que ocorreu no que Singer chama de socialismo real, englobaria vários modos de produção: produção simples de mercadoria, empresas sem fins lucrativos, produção para subsistência e cooperativas autogeridas. Estas últimas “[...] constituem um embrião ou ‘implante socialista’” (SINGER, 2000a, p. 47).

Aqui, o autor reforça a diferença entre as revoluções sociais e políticas: a revolução política socialista impõe um plano de metas que se sobrepõe às liberdades individuais e isso, para o autor, é inadmissível. Singer defende que o socialismo é um projeto em constante construção para se contrapor à revolução política: o socialismo é uma luta que se realiza no presente e não após a tomada do poder.

Para melhor compreendermos o que Singer defende como projeto de superação do capitalismo por meio da economia solidária, resumo os pontos fundamentais que dão base à sua concepção de socialismo: 1) contrapõe-se a qualquer forma de autoritarismo e, como consequência; 2) contrapõe-se ao planejamento centralizado da economia; 3) defende a autogestão da produção, do trabalho e do consumo como modo de produção socialista; 4) assume que este modo de produção já existe e coexiste sob a estrutura capitalista; 5) defende que é por meio da vivência neste modo de produção que se dará a sua dominância, sem a necessidade de que haja uma revolução política socialista; 6) e dominância aconteceria após o aprendizado cooperativo, no trabalho e nas escolas; 7) o socialismo, ainda que se torne modo de produção dominante, conviverá com outros modos de produção, assim como faz o capitalismo, devendo, portanto, estar em construção contínua.

Economia solidária: continuidade histórica ou descontextualização?

Tentando responder às críticas que fez a Marx e Engels, Singer define a economia solidária como um novo modo de produção que tem a cooperativa de produção como o empreendimento solidário ideal e a autogestão como princípio organizador. Além disso, cita as experiências da Sociedade dos Pioneiros de Rochdale e do Complexo Cooperativo de Mondragón como exemplos do projeto de economia solidária, defendendo que ela é a continuidade das lutas dos trabalhadores do século XIX. Por meio desse argumento, dá corpo às oposições que faz entre revolução política e revolução social ao mesmo tempo em que comprova a viabilidade do seu projeto.

O problema é que, ao elencar tais exemplos, ele não questiona se os princípios dos Pioneiros de Rochdale, nos quais se apoia, não se restringem a uma prática democrática que não toca, a fundo, a questão da relação de dominação que o capital exerce sobre os trabalhadores. Afinal, ao localizarmos essa experiência historicamente, percebemos que o princípio um sócio, um voto remetia às lutas por uma maior participação política na sociedade – o voto, naquela época, era censitário (COLE, 1944). Além disso, a Sociedade dos Pioneiros foi organizada a despeito da organização social do trabalho nas indústrias, e dizia respeito aos artesãos excluídos ou resistentes à entrada nas fábricas. Esses trabalhadores qualificados[13], buscando dar continuidade à sua diferenciação perante os trabalhadores não-qualificados[14] – negando, inclusive, o trabalho indiferenciado nas fábricas –, montou um clube de trocas que tinha a função de tornar seus produtos vendáveis já que, com a produção em massa e a diminuição do tempo e dos custos da produção, a competição com os produtos industrializados deixava esses produtores cada vez mais excluídos do mercado.

Acredito, inclusive, que esse pode ter sido um dos fatores que levou o movimento sindicalista a se afastar do movimento cooperativista. Ambos nasceram em meio à Revolução Industrial e, com o tempo e o desenvolvimento do socialismo teórico, as demandas de um e de outro movimento se diferenciaram. Eles só uniram forças em um prazo muito curto de tempo. Tempo suficiente para que as experiências cooperativas mostrassem não serem capazes de incluir todos os trabalhadores em seu projeto. As cooperativas do século XIX não eram acessíveis a todos os trabalhadores. Apenas os pequenos produtores ou detentores de algum capital podiam participar como sócios (THOMPSON, 2002; COLE, 1944; COLE; POSTGATE, 1981).

Com essas ponderações, procuro mostrar como é problemática a apropriação que Singer faz dos elementos de uma experiência que tem quase dois séculos de diferença em relação ao seu projeto de economia solidária. A continuidade que o autor atribui às duas experiências acaba por deixar de lado as especificidades históricas de cada período. Dispensa, por exemplo, a análise da disputa do poder e de sua composição no universo capitalista. A relação de dominação de classes que se realiza no Estado capitalista não aparece em sua discussão. É assim, por exemplo, que o neoliberalismo, materializado em decisões políticas ou como ideologia incorporada no discurso e na prática dos indivíduos, some de cena na discussão da economia solidária. Esse projeto aparece, em seu discurso, em um cenário de crise econômica no qual a esquerda buscava uma nova alternativa ao capitalismo. Também foi em meio a uma crise econômica e à construção de um projeto alternativo ao capitalismo que o movimento cooperativista inglês surgiu em meados do século XIX. As crises, sem as especificidades históricas que as definem e explicam, formam um modelo que permite o transporte das experiências do passado para o presente sem que haja a necessária contextualização histórica. Esse mesmo expediente de transposição, Singer realiza com a experiência de Mondragón (Espanha), quando a toma como exemplo da vigência da economia solidária em um contexto atual.

Nesse caso, o tratamento dado ao Complexo Cooperativo de Mondragón (CCM) como uma experiência descontextualizada a despe de suas especificidades históricas e locais. Não permite, portanto, a compreensão dos principais elementos que, em combinação, permitiram a constituição e o desenvolvimento dessa experiência.

Kasmir (1996), por exemplo, mostra como elementos de análise importantes para compreendermos o CCM e sua história, ficam de fora quando não os relacionamos com a luta pela autonomia do povo basco nem com a ligação da primeira cooperativa formada em Mondragón com o Partido Nacionalista Basco, apoiado pela Igreja Católica espanhola e pela ditadura franquista. Esses fatores, diz a autora, são indispensável para compreendermos o porquê de o projeto cooperativista não ter sido combatido pelo governo central.

Sem essa contextualização, não fica claro que a primeira cooperativa que dá origem ao complexo fazia parte do projeto do grupo Ação Católica de arrefecer a luta de classes em uma região da Espanha que era conhecida pela resistência operária. Também não fica claro que o sucesso da primeira cooperativa e sua transformação em complexo combinados ao recrudescimento da luta pela independência do país Basco tornam essa experiência um componente da construção da identidade basca e um pilar estratégico da autonomia econômica da região até os dias de hoje (KASMIR, 1996).

Breve debate sobre a transição

Ao avaliar o movimento cooperativista como um dos dois aspectos compensadores que ele vê no movimento operário após as Revoluções de 1848[15], no Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores, escrito em 1864, Marx alertou para que “[...] o valor dessas grandes experiências sociais não seja superestimado” (MARX, 1988, p.319).

Assim, apesar dos elogios que teceu ao movimento cooperativista, avalia que ele não levará à transformação alguma se continuar sendo fruto de manifestações isoladas. Para ele, a única maneira de o cooperativismo salvar os trabalhadores é desenvolvê-lo em dimensões nacionais e fazê-lo ser incorporado e incrementado por meios nacionais. Mas Marx entende que isso só seria possível após a conquista do poder político pela classe operária, sendo esta a sua tarefa principal. Enquanto ela não fosse realizada

Os senhores da terra e os senhores do capital usarão sempre seus privilégios políticos para a defesa e perpetuação de seus monopólios econômicos. Em vez de a promoverem, continuarão a colocar todos os obstáculos possíveis no caminho da emancipação do operariado (MARX, 1988, p. 320).

O elemento da luta política, essencial para Marx pensar a transição, é o elemento que desaparece em Singer. Como vimos, ao definir sua concepção de socialismo, o autor se afasta da revolução política e coloca a revolução social como o processo que, por si só, levará à passagem do modo de produção capitalista para o socialista, ou à dominância do modo de produção socialista sobre o capitalista.

Uma primeira crítica que podemos fazer à visão de Singer sobre o socialismo vem de uma discussão da marxista ortodoxa Maria Turchetto (2005), que vai contestar as similaridades entre a transição do feudalismo para o capitalismo e do capitalismo para o socialismo e mostrar as incongruências teóricas geradas por aqueles que baseiam seu pensamento nesse modelo.

A autora explica que o modelo de convivência entre diferentes modos de produção que disputam a dominância, como defende Singer, é nomeado na literatura marxista de formação social. Esse conceito busca mostrar que não há modo de produção em estado puro e que, nas sociedades historicamente concretas, há “[...] uma combinação, uma articulação de modos de produção diversos organizados em torno de uma determinada forma dominante de relações sociais de produção”. (TURCHETTO, 2005, p.48).

O modo de produção dominante decidiria a posição e a influência dos outros modos de produção, adequando para si suas relações sociais. Dessa forma, o modo de produção dominante conviveria tanto com elementos que constituíam formas produtivas anteriores quanto com elementos que constituiriam futuras formas produtivas. Turchetto (2005) explica que essa análise se aplica para a explicação da transição do feudalismo para o capitalismo porque a convivência entre os dois modos de produção era possível.

Isso porque se tratavam de duas formas de dominação distintas: enquanto o feudalismo se baseava na exploração extraeconômica dos servos pelos proprietários da terra, o capitalismo se baseava na exploração econômica dos trabalhadores. A passagem de uma forma de produção para a outra se deu justamente porque o capitalismo rompeu com a necessidade da exploração extraeconômica típica do feudalismo.

Isso ocorreu na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas e de novas formas de organização do trabalho expropriou os trabalhadores do domínio sobre a técnica da produção e eles se tornaram incapazes de realizar sozinhos todas as tarefas necessárias para a produção de um produto. É a partir da subsunção real do trabalho ao capital, portanto, que a passagem do feudalismo para o capitalismo se concretiza.

É justamente a ruptura com a subsunção real que Singer propõe que seja realizada por meio da economia solidária: com a autogestão, os trabalhadores retomariam o conhecimento de todo o processo de trabalho e aboliriam a subsunção real do trabalho ao capital. A subsunção formal aboliria no momento em que a propriedade privada dos meios de produção desaparecesse sob a forma da propriedade coletiva da cooperativa ou da empresa autogerida.

Acontece que a transição do feudalismo para o capitalismo, na condição da passagem da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital, é também o que determina a formação de uma divisão social do trabalho tipicamente capitalista. E é a partir do conjunto desses elementos que as relações sociais capitalistas se estabeleceram. Cria-se, assim, uma formação social específica, com instituições próprias e um aparato jurídico-legal construído para que o processo de valorização, central na reprodução do capitalismo, continue em vigor. A valorização, que permite ao capital se auto-reproduzir, é, segundo Turchetto (2005), o diferencial do modo de produção capitalista em relação a outros modos de produção.

É nesse sentido que Turchetto (2005) critica os teóricos da transição que a pensam sem a necessidade do salto revolucionário, que ela entende pela tomada do poder estatal por parte do proletariado. Ao ignorar esse passo, tais teóricos defenderiam um processo gradual de mudança, sem marcos de ruptura precisos, e considerariam o socialismo como um modo de produção estável, que só precisaria se aperfeiçoar para se tornar dominante. Para a autora, o socialismo é a sociedade de transição, e o comunismo, a sociedade em que a mudança estaria consolidada.

Turchetto (2005) defende, a partir do entendimento de que o gradualismo não define marcos de ruptura, que os novos modos de produzir que aparecem no capitalismo são, na verdade, novas formas de consumir, distribuir e de promover a circulação de bens, que não afetam a estrutura das relações de produção.

A permanência da relação de produção capitalista leva à continuidade da divisão social do trabalho capitalista que, por sua vez, reproduz as relações sociais próprias da sociedade burguesa. Isso leva a crer que a transição não pode ser configurada como uma fase de coexistência de modos de produção nem como uma fase de adequação das forças produtivas às relações de produção comunistas já instaladas.

A passagem do capitalismo para o comunismo não se resume, portanto, à substituição de uma exploração por outra – a extraeconômica pela econômica –, como ocorreu na passagem do feudalismo para o capitalismo. Trata-se, segundo Turchetto (2005) de abolir toda forma de exploração e de divisão em classes. E o processo de instauração dessa nova forma de sociedade não pode correr “[...] ao lado do modo de produção capitalista, na medida em que coincide com a eliminação deste último” (TURCHETTO, 2005, p.53).

Com isso, o que Turchetto (2005) quer demonstrar é que assim como cada modo de produção tem suas especificidades, também a transição de um modo de produção a outro deve ser pensada como diferente da anterior. Nesse sentido, a autora destaca que a dominância do modo de produção capitalista não permite que relações de produção diferentes coexistam com ela. Sua dominância – ela admite que o modo de produção capitalista não existe em estado puro –, é derivada dessa sua característica de auto- reprodução e de resistência à influência dos outros modos de produção. Ao contrário do modo de produção feudal, o modo de produção capitalista não permitiria a existência de interstícios nos quais um novo modo de produção possa se desenvolver, coexistir e disputar a dominância (TURCHETTO, 2005).

Podemos discordar da avaliação de Turchetto (2005) de que a tomada do poder do Estado é condição necessária para a passagem de um modo de produção ao outro, assim como do tratamento que ela dá ao socialismo e ao comunismo. Mas sua análise nos traz a possibilidade de questionar a proposta de transição de Singer na medida em que demonstra que a passagem de um modo de produção a outro não obedece a uma estrutura predeterminada, e que a dinâmica do processo de transição muda conforme mudam as especificidades do modo de produção dominante.

O modo de produção capitalista coexistiu com o feudal e o superou porque existiam elementos políticos, sociais e econômicos que permitiram essa coexistência e essa passagem. Como Turchetto (2005) nos faz entender, o capitalismo se constituiu, em certa medida, com a ajuda do feudalismo e só se tornou viável porque não disputava, com ele, a mesma forma de dominação. Tornou-se viável, nesse sentido, política, econômica e socialmente, porque a base mercantil, na qual ele se apoiava, necessitava de uma formação social que lhe desse espaço para se consolidar. A burguesia nascente, excluída do universo de obrigações feudais, foi ganhando espaço. E, à medida que novas técnicas de produção e novas formas de organizar o trabalho foram aparecendo, na forma da manufatura e da grande indústria, a produção de mercadorias e as novas relações sociais que ela encetou, tornaram o capitalismo o modo de produção dominante.

Posso dizer, a partir disso, que sem a presença dessas mesmas condições não é possível pensar em uma transição que obedeça a mesma lógica da passagem do feudalismo para o capitalismo. Portanto, não é possível afirmar que o capitalismo dá espaço para que outro modo de produção se consolide, coexista e compita com ele. Sua lógica de auto- reprodução, pautada pelo processo de valorização, é o fator que leva o modo de produção capitalista a ocupar todos os espaços e até a incorporar em sua dinâmica formas alternativas de organização da produção, o que pode ser visto no próprio cooperativismo atual, que se insere no mercado capitalista. O maior exemplo disso é o Complexo Cooperativo de Mondragón, que chegou a constituir empresas multinacionais e reproduz, em outros países, relações de assalariamento típicas do capitalismo, reproduzindo a relação entre proprietários (os cooperados que têm a propriedade coletiva da empresa e de seus lucros) e os trabalhadores assalariados.

Para melhor compreender essa afirmação, é necessário apresentar a discussão que Gaiger (2005) se propôs a fazer sobre a categoria marxista de modo de produção que vai, em certo sentido, se opor à interpretação de Turchetto (2005). Nessa discussão, Gaiger vai dizer que o espaço para a coexistência de outros modos de produção não existe no capitalismo – ao contrário do que afirmou Turchetto, para quem a convivência existe, mas em uma relação que é subordinada. Essa concepção de Gaiger (2005) nos dá elementos para embasarmos uma segunda crítica ao projeto de Singer.

Gaiger (2005) retoma a definição, proposta por Godelier (apud GAIGER, 2005), entre modo de produção e modo material de produção. O modo de produção só existe se um modo material de produção que lhe seja apropriado estiver consolidado. Com isso, ele quer dizer que para que um modo de produção exista é necessário que haja uma composição dos elementos e das formas materiais de trabalho necessários para a reprodução das condições materiais de existência.

Ele explica que modos materiais que produzem bens semelhantes podem se valer de bases técnicas distintas, o que demonstra que “[...] um modo material de produção não existe jamais isolado dos arranjos sociais do processo de trabalho” (GAIGER, 2005, p.2). Ou seja, um modo de produção engendra uma totalidade que agrega as relações sociais ao processo de produção, distribuição circulação e consumo de bens de produção.

O autor defende que o capitalismo transforma continuamente sua base técnica e realiza, com isso, “[...] o que mais importa num modo de produção: instaura o processo que vem a repor a sua própria realidade, a reproduzi-la historicamente” (GAIGER, 2005, p.2). Nesse sentido, ele entende que não podemos chamar de modo de produção as formas econômicas que não possuam uma estrutura político-econômica como a capitalista, que é capaz de reconstruir, com autonomia, suas relações de exploração e dominação a partir de novas formas de organização do trabalho e da produção.

Foi isso o que aconteceu, por exemplo, com o fordismo e a acumulação flexível no capitalismo: formaram estratégias distintas de repor o processo de valorização do capital. No caso da acumulação flexível, ela é composta de formas variadas de organização do trabalho. Em cada uma dessas formas, as relações de produção ganham uma aparência diversa e essa aparência pode nos levar a concluir que se trata de modos de produção diferentes. Mas a despeito da aparência, essas formas distintas de organizar o trabalho participam de uma mesma estratégia de acumulação capitalista. O que existe dentro do capitalismo não são, a partir dessa perspectiva, outros modos de produção, mas sim formas sociais de produção atípicas. Nesse sentido, apesar de a economia solidária se basear em relações sociais de produção distintas da economia capitalista, suas inovações se concentram nas relações e práticas internas dos empreendimentos solidários.

Um exemplo que Gaiger (2005) utiliza são as cooperativas dos assentamentos rurais, que funcionam com uma lógica própria, baseada na propriedade coletiva da terra, mas cuja base técnica não se altera, é a mesma do capitalismo. Além do que, é com os agentes desse modo de produção que eles negociam sua produção. O mesmo vale para as cooperativas de produção que estão vinculadas a cadeias produtivas ou atuam como terceirizadas. Essa falta de autonomia leva Gaiger (2005) a concluir que a emancipação do trabalho proposto pela economia solidária é incompleta. É nesse sentido, diz ele, que não podemos pensá-la como um novo modo de produção, pois ela não se coloca como alternativa ao capitalismo.

A isso, acrescento: mais do que não se colocar como alternativa ao capitalismo, ela atua como uma das formas de organização de trabalho diferenciadas que contribuem para sua reprodução. Em tempos de acumulação flexível do trabalho, cooperativas ou empreendimentos econômicos solidários podem ser funcionais ao atuar como terceiras ou se inserirem em uma cadeia produtiva. Participam ativamente da reprodução do capital. Ou ainda, como avalia Gaiger (2005), sofrem uma subsunção inversa do trabalho ao capital, porque a única maneira dessas formas sociais atípicas sobreviverem é adotar a base material do capitalismo.

Conclusão

Apesar de não concordar inteiramente com a tese defendida por Poulantzas (1980) no que se refere à concentração do poder no Estado, acredito que o autor esteja certo quando defende que ele possui um caráter estratégico para a reprodução do capital e que essa sua característica é derivada do fato de nele estarem em disputa perspectivas de classes diversas, sem que isso, no entanto, altere a dominação da classe capitalista que ele expressa. O Estado reproduz, nesse sentido, as relações de poder presentes na sociedade capitalista.

Como defende Artous (1999) o conceito de cidadania que o Estado capitalista propõe aos indivíduos, por exemplo, nasce em um momento em que se forja uma igualdade entre trabalhadores e capitalistas, enquanto cidadãos, à luz dos direitos políticos e civis por ele formalizados. Essa igualdade formal não corresponde, no entanto, a uma igualdade real entre esses dois grupos, mas, assim como a mercadoria e o conceito de valor escondem a extração de mais-valia do trabalhador pelo capitalista, a cidadania construída pelo Estado capitalista, fetichiza as relações sociais e faz os indivíduos acreditarem que estão submetidos aos mesmos pesos e medidas.

É nesse sentido que acredito que a socialização dos meios de produção, a educação autogestionária e o autogoverno generalizado, como propostos por Singer via propriedade coletiva dos associados de uma cooperativa, não sejam suficientes para pensarmos, à luz das reflexões apresentadas, na passagem para uma sociedade não- capitalista. Entendo que os mecanismos de auto-reprodução do capital estejam garantidos por sua materialidade no plano jurídico-formal do Estado. É por isso que a mudança na forma de acumulação do capital, iniciada na década de 1970, foi acompanhada de uma mudança nas políticas implementadas pelos Estados nacionais e de uma série de modificações em suas legislações.

O Brasil dos anos de 1980 e 1990 é um exemplo de como a acumulação flexível é acompanhada da retórica neoliberal e de uma série de reformas econômicas e legais que permitem a reestruturação produtiva ganhar corpo e se espalhar pelas empresas, fábricas e todos os setores econômicos do país.

Sem a compreensão da lógica pela qual atua a auto-reprodução do capital, que é amparada por um Estado atravessado pelos interesses da classe capitalista, que assegura suas demandas em termos de políticas governamentais e em um corpo jurídico-formal, não podemos pensar em uma transformação social possível.

Singer, ao deixar de lado essa discussão, acaba por atribuir apenas aos indivíduos e à sua ação política, a capacidade de transformação. Mas, como alerta Gaiger (2005), é preciso identificar as coerções intransponíveis, que descartam certas possibilidades em cada momento histórico. Não que a transformação não seja possível, mas para que ela se torne concreta é preciso que levemos a sério os mecanismos de coerção aos quais estamos submetidos e construamos propostas que visem enfrentá-los e modificá-los. Nos marcos do capitalismo, acredito que sem a transformação do Estado, de seus aparelhos e de sua materialização jurídico-legal, não é possível pensar em uma sociedade que não priorize a valorização do capital.

A economia solidária, no presente histórico, é coagida a se submeter à ordem do capital à custa de não se tornar viável economicamente. É nesse sentido que defendo que a economia solidária como proposta por Singer, apesar de ser importante para minorar as mazelas do desemprego, não tem se constituído de fato em uma alternativa ao capitalismo. Por mais que as cooperativas e os empreendimentos econômicos solidários exercitem, internamente, valores democráticos, igualitários e equitativos, para sobreviver eles se submetem à cadeia produtiva capitalista, seja na venda de seus produtos ou serviços, seja porque se subordinam às empresas capitalistas por meio das terceirizadas.

Nessa equação, elas servem mais como mecanismos de geração de trabalho e renda – que têm atuado também como barateadores dos custos de produção de empresas ou indústrias capitalistas, tornando- se auxiliares do processo de valorização do capital -, do que como embriões de um novo modo de produção, alternativo ao capitalismo.

= = =
Notas:

[1] Este texto é resultado da minha dissertação de mestrado financiada pelo CNPq.
[2] Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil. bacastro@gmail.com
[3] Em Castro (2009), defino um eixo cronológico-temático para encadear melhor os argumentos de Singer sobre a economia solidária, já que seus textos são inúmeros e neles as concepções de economia solidária variam. São cinco os eixos principais: A) luta contra o desemprego; B) continuidade histórica das lutas dos trabalhadores; C) forma de organização e riscos de degeneração dos empreendimentos solidários; D) novo modo de produção; E) autogestão.
[4] Em hebraico, pássaros da liberdade. Também é o nome de um movimento juvenil pioneiro sionista e socialista estabelecido na Polônia no final dos anos de 1920 cujas ideias chegaram ao Brasil com os imigrantes, na década de 1930. O grupo se reuniu pela primeira vez em Porto Alegre, em 1945, mas não há data precisa de fundação do grupo de São Paulo. Estima-se que seja por volta de 1947. O Dror teve grande expansão a partir da fundação do Estado de Israel, em 1948. Na sede de São Paulo, por exemplo, o número de membros passou de 100 para 800 naquele ano (PINSKY, 2000). Foi neste período que Paul Singer se associou ao movimento.
[5] Sionismo é um movimento político que defendia a autodeterminação e a fundação de um Estado próprio para o povo de origem judaica.
[6] Fonte das gerações, em hebraico.
[7] Em Castro (2009), mostrei que Singer defende que a economia solidária é uma continuidade do movimento cooperativista do século XIX, tendo renascido no século XXI.
[8] A COPPE construiu a primeira Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) em 1995.
[9] Selecionei dois textos, Uma utopia militante, de 1998 e Economia socialista, de 2000. O primeiro é um trabalho de fôlego historiográfico que buscava contestar as visões dominantes sobre o socialismo e indicar novas propostas e caminhos para o seu alcance efetivo. O segundo é fruto do Seminário Socialismo e Democracia que o Instituto Cidadania, a Fundação Perseu Abramo e a Secretaria Nacional de Formação do PT promoveram em São Paulo, de abril a junho de 2000.
[10] É importante destacar que há um debate sobre a utilização do termo socialista para designar o regime soviético. Bettelheim (1983), em A luta de classes na União Soviética, enxerga na URSS das décadas seguintes à Revolução de Outubro uma sociedade dual, com práticas socialistas e não-socialistas. E é essa dualidade, para ele, que retira da URSS o rótulo de ter realizado o socialismo após a revolução.
[11] Cabe ponderar, no entanto, que a economia solidária não é considerada por Singer (1998), em Uma economia socialista, como o único caminho para o socialismo. Há uma série de frentes nas quais os movimentos operário e socialista devem avançar (como a expansão da democracia e da participação, implementação de políticas públicas, incentivos públicos a empresas autogestionárias etc.) para que a economia socialista se consolide. Em Castro (2009) mostro, no entanto, que em seus escritos posteriores, Singer define a economia solidária como um modo de produção singular, que supera o capitalismo. Entendo que haja uma diferença fundamental nos textos em que ele escreve para fins acadêmicos e nos que ele escreve para fins militantes (apesar de essas características não se encontrarem divorciadas em sua trajetória, sendo esta, aliás, sua maior qualidade). Nos últimos, a articulação com as propostas dos programas do PT se coloca de maneira direta e clara. Nos primeiros, o impacto das relações de trabalho solidárias aparece como o núcleo central da transformação da sociedade.
[12] Seus princípios eram: 1) gestão democrática – para cada sócio, um voto; 2) abertura a todos que quisessem integrá-la, desde que contribuíssem para a cota de capital mínima; 3) limitação da remuneração do capital a uma porcentagem fixa – para evitar que o excedente fosse apropriado indevidamente; 4) divisão equitativa dos excedentes; 5) vendas à vista; 6) produtos de qualidade; 7) promoção de uma educação cooperativista para os sócios; 8) neutralidade política e religiosa. A obediência ao conjunto dessas regras é que teria assegurado a viabilidade econômica e o caráter socialista da Sociedade dos Pioneiros (SINGER, 1998).
[13] Os artesãos perderam a propriedade dos instrumentos de produção e dos produtos de seu trabalho, além da habilidade técnica e do conhecimento para produzir um produto e alguns resistiram a esse processo formando associações e/ou cooperativas.
[14] Passado o intervalo geracional entre o início da manufatura e a consolidação da grande indústria, os antes aprendizes de artesãos tornaram-se operários, especializaram-se em uma função e perderam o conhecimento do processo geral de produção.
[15] Marx (1988) diz que após a derrota das revoluções de 1848, as organizações e publicações do movimento operário foram esmagadas na Europa e seus elementos mais esclarecidos ou fugiram para a nova República formada na América, ou foram levados a trabalhar nas novas minas de ouro na Austrália e na Califórnia com a promessa de ganhar mais e trabalhar menos. Mas houve dois momentos compensadores para o movimento operário após as revoluções. O primeiro foi a aprovação da jornada de trabalho de 10h, o segundo, o movimento cooperativista.

= = =
Referências

ARTOUS, A. Marx, l’état et la politique. Paris: Éditions Syllepse, 1999.
BETTELHEIM, C. A luta de classes na União Soviética. Segundo período: 1923- 1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. v.2.
CASTRO, B. A economia solidária de Paul Singer: a construção de um projeto político. 2009. Dissertação. (Mestrado em Ciência Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
COLE, G.D.H. A century of co-operation. London: George Allen & Unwin Ltd, 1944.
COLE, G.D.H.; POSTGATE, R. The common people (1746-1946). 4. ed. London and New York: Methuen, 1981.
GAIGER, L. I. “A economia solidária diante do modo de produção capitalista”. Leituras Cotidianas, n. 127, p. 1-13, jan., 2005. Disponível em: <http:// br.geocities.com/mcrost 07 /20050117a _ a _ economia _ solidaria _ diante_do_modo_de_producao_capitalista.htm#_ednref3>, Acesso em: 12 fev. 2009.
KASMIR, S. The myth of Mondragón: cooperatives, politics, and working-class life in a Basque Town. Albany: State University of New York Press, 1996.
LECHAT, N. Trajetórias intelectuais e o campo da economia solidária no Brasil. 2004. Tese. (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
MARX, K. “Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores”. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa- Omega, 1988, p. 313-321.
OLIVEIRA, P. S. “Uma trajetória em companhia de Paul Singer”. In: SOUZA, A. R.; CUNHA, G. C.; DAKUZAKU, R.Y. (orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia solidária. São Paulo: Contexto, 2003, p. 11-24.
PINSKY, C. B. Os pássaros da liberdade: jovens, judeus e revolucionários no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
POULANTZAS, N. O estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
SINGER, P. “Economia solidária contra o desemprego”. In: Folha de S. Paulo. São Paulo, 11 de jul. de 1996. Opinião, Tendências e Debates, p. 3.
______. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis: Vozes, 1998.
______. “Os meus mestres”. In: AGUIAR, F. (org.). Antonio Candido: pensamento e militância. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, São Paulo: Humanitas/ FFLCH/ USP, 1999, p. 170-175.
______. “Economia socialista”. In: SINGER, P.; MACHADO, J. Economia socialista: socialismo em discussão. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000a, p. 11-50.
______. “Planejamento e mercado”. In: SINGER, P.; MACHADO, J. Economia socialista: socialismo em discussão. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000b, p. 77-80.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
TURCHETTO, M. As características específicas da transição ao comunismo. In: NAVES, M. B. (org.). Análise marxista e sociedade de transição. Campinas: UNICAMP, 2005, p. 7-56. (Coleção Ideias 5)
= = =

Resumo: Singer define a economia solidária como um projeto político: ela é um modo de produção diferente do capitalista, que leva à sua superação. Neste artigo, pretendo mostrar de que maneira sua biografia contribui para uma definição específica de socialismo e as limitações que ela traz para a construção de seu projeto político. Para tanto, apresento brevemente sua trajetória militante seguida do debate teórico e político que ele realiza sobre o socialismo e a isso contrasto o debate marxista sobre a transição. Concluo pontuando as limitações que sua visão sobre o socialismo traz para a construção de seu conceito de economia solidária. Palavras-chave: economia solidária, Paul Singer, socialismo.

The socialism of Paul Singer and the limits of his solidarity economy's political project

Abstract: Singer defines solidarity economy as a political project: it is a different mode of production, distinct from the capitalist one and that aims to lead to its overcoming. This paper intends to show how Singer’s biography contributes to a construction of his specific definition of socialism and the limitations it brings to build his political project. I present briefly his militant trajectory followed by the theoretical and political debate about socialism and I contrast it whit the Marxist debate on the transition. I draw the conclusions by pointing out the shortcomings that his vision of socialism brings to its concept of solidarity economy.

Keywords:
solidarity economy, Paul Singer, socialism.
= = =
CASTRO, B. G. “O socialismo de Paul Singer e os limites de seu projeto político de economia solidária”. In: ORG & DEMO (Marília), v. 11, n.2, p. 23-44, Jul./Dez., 2010.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário