por Bárbara Geraldo de Castro[1][2]
ensaio em PDF/2010
Paul
Singer (1996, 1998, 1999) define a economia solidária como outro modo
de produção, diferente do capitalista e que leva à sua superação. Mas
nem sempre foi assim[3]. Inicialmente, ele defendia a economia
solidária como uma alternativa ao desemprego e parte de um programa
maior de mudanças. Aos poucos, essa proposta reativa ganhou um caráter combativo
e universal: Singer passou a tratar a economia solidária como
resistência dos trabalhadores ao capitalismo. É nesse sentido que
entendo que a economia solidária defendida pelo autor é um projeto
político. Para construí-lo, ele partiu de elementos de discussões
teóricas (o socialismo utópico e a autogestão) e de experiências
empíricas (a Sociedade dos Pioneiros de Rochdale e o Complexo
Cooperativo de Mondragón).
Entendo, no entanto, que outros
elementos sejam fundamentais para compreendermos a construção de seu
projeto político. Além dessas referências teóricas e empíricas,
necessárias para marcar o caráter científico do debate que realiza, sua
biografia é indispensável para compreendermos sua concepção de
socialismo e a maneira como ele pensa a superação do capitalismo. Este
texto destaca esses dois elementos e busca mostrar quais são as
limitações que eles trazem à construção do argumento do autor.
Uma breve biografia
Foi
em meio à anexação da Áustria pela Alemanha, em 1932, que nasceu Paul
Singer. Filho de família judia contemporânea à ascensão do nazismo, ele
sofreu a perseguição dos agentes do regime ainda criança. Em 1940, com
oito anos, logo após o início da 2ª Guerra Mundial, sua mãe fugiu com
ele rumo ao Brasil.
É por meio da experiência do Holocausto que Singer se aproxima, em São Paulo, do Dror[4], um grupo político de jovens judeus socialistas sionistas[5]
(PINSKY, 2000). Os militantes desse grupo se consideravam parte de um
movimento no qual o pluralismo e a heterogeneidade de ideias tinham
espaço e se colocavam tanto contrários aos revisionistas quanto aos
comunistas. Aos primeiros, porque eram violentos e exortavam o
terrorismo e chauvinismo antiárabe palestino; aos segundos, porque tanto
a URSS quanto os partidos comunistas eram contrários ao sionismo e a
Israel (PINSKY, 2000).
Ele se associou ao Dror aos 15 anos e
atribuiu sua entrada no grupo mais à afinidade com o socialismo do que
com o sionismo (PINSKY, 2000). Foi esse grupo que o levou a participar
da construção do Kibutz Hachshará Ein Dorot[6], em Jundiaí (SP),
no qual trabalhava nas atividades produtivas, aprendia a viver
coletivamente, estudava hebraico, movimento sionista e cultura judaica e
se preparava para a vida em um kibutz em Israel (LECHAT, 2004). Em
entrevista a Lechat, declarou: “Isto foi o início da economia solidária.
Não tinha este nome, mas a ideia era fazer um socialismo. Um socialismo
na prática através do que chamaríamos hoje de uma cooperativa
integral”. (SINGER apud LECHAT, 2004, p.171).
Para viver no
kibutz, abraçou a recusa do grupo à vida universitária e se dedicou ao
curso de eletrotécnica. Participou, também, do programa Ação Educativa,
que tinha o objetivo de ampliar o alcance dos debates internos do
grupo, dando aulas sobre a história do movimento operário e materialismo
histórico. Foi, ainda, o principal protagonista dos questionamentos
ideológicos pelos quais o grupo passou no início da década de 1950,
desencadeando um racha em 1952, com sua declaração de saída do grupo, na
qual dizia que o sionismo não fazia sentido, pois apenas o socialismo
era capaz de garantir o bem-estar de todos os homens, incluindo as
minorias (PINSKY, 2000).
Ao sair do Dror, Singer prosseguiu seus
estudos em eletrotécnica e conseguiu emprego em uma indústria, na qual
trabalhou entre 1952 e 1956. Nesse período, se filiou ao Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo e, aos 21 anos, foi um dos principais líderes
de uma das maiores paralisações da história do país. Em 1953, cinco
categorias da indústria paulistana (metalúrgicos, têxteis, marceneiros,
vidreiros e gráficos) ficaram paralisadas por cerca de um mês,
mobilizando cerca de 300 mil trabalhadores (LECHAT, 2004; OLIVEIRA,
2003).
Um ano após a greve, em 1954, portanto, Singer teve seu
pedido de naturalização aprovado e pôde se filiar ao Partido Socialista
Brasileiro (PSB) (OLIVEIRA, 2003). O partido, assim como o Dror também
se posicionava contra os comunistas e o socialismo da URSS. Seu primeiro
contato com a imprensa socialista e com os colegas comunistas começou,
no entanto, em 1945, ano em que conheceu o médico Febus Gikovate, o
jornalista Fúlvio Abramo, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes,
o advogado Antônio Costa Correia e o crítico literário Antonio Candido,
com os quais formou um grupo de amizade que diz ter contribuído muito
para sua formação política (LECHAT, 2004; SINGER, 1999).
A
carreira acadêmica começou um pouco mais tarde, em 1956, quando ele
ingressou na USP para fazer o Curso de Ciências Econômicas e
Administrativas. É desta mesma universidade que ele se tornou professor,
em 1960, integrando o grupo de estudos d’O capital junto com
Artur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Otávio Ianni e
Fernando Novais. Foi aposentado pelo Ato Institucional n° 5 em 1968 e
ajudou na fundação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(CEBRAP) que, em entrevista à Lechat (2004), comparou a uma cooperativa,
pois havia uma caixa comum e todos ganhavam a mesma coisa.
Aqui,
como quando fala sobre o Dror, Singer reafirma a narrativa de
continuidade histórica que ele construiu sobre a economia solidária[7].
O kibutz de Jundiaí e a fundação e o funcionamento do CEBRAP são
indicados por ele como momentos de sua história em que ele viveu a
economia solidária – mesmo que, à época, não lhes atribuísse este nome.
Essas experiências foram fundamentais para a formação política do autor.
Sua vivência produziu um conhecimento sobre formas coletivas de gestão
que vão aparecer e fundamentar a definição da economia solidária. Mas
esta é uma etapa de sua história intelectual-militante que ainda está
por vir.
Enquanto isso, Singer participou da fundação do Partido
dos Trabalhadores (PT) em 1980 e fez parte de sua primeira direção
nacional. Participou também da redação do primeiro programa de governo
do PT, quando Lula se candidatou ao governo do Estado de São Paulo, em
1982. Foi secretário de planejamento de Luiza Erundina durante o período
em que ela esteve à frente da Prefeitura de São Paulo, entre 1989 a
1992, bem como o principal articulador de seu plano de governo, nas
eleições municipais de 1996. Foi neste momento, aliás, que usou pela
primeira vez o termo economia solidária, apresentando-o como uma
maneira de enfrentar os elevados índices de desemprego, transformando os
desempregados em microempresários ou autônomos (SINGER, 1996). Essa
ideia o levou a se dedicar aos estudos do cooperativismo e práticas
autogestionárias e, em 1998, inspirado pela experiência de formação de
cooperativas populares pela Coordenação do Programa de Pós-Graduação em
Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE)[8],
ajudou na fundação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares
(ITCP) da USP. Alguns anos depois, em 2003, quando Lula se tornou
presidente da República , assumiu a Secretaria Nacional de Economia
Solidária (Senaes). O órgão, ligado ao Ministério do Trabalho, foi
criado naquele mesmo ano. Singer permanece na secretaria até o momento.
A concepção de socialismo de Singer
A
postura antiautoritária, a vida em comunidade e a preocupação com a
educação como instrumento de politização, como vimos, são elementos que
acompanharam Singer no decorrer de sua vida militante e intelectual.
Essas mesmas preocupações aparecem de maneira muito clara nos textos em
que ele trata de maneira direta sobre aquilo que entende sobre
socialismo[9].
Singer busca se diferenciar de outros
socialistas e marca sua posição ao criticar o que avalia como a
fragilidade e as consequências do projeto proposto por Marx e Engels.
Para Singer (2000a), eles sofriam de um reducionismo teórico, pois a
crítica que ambos realizaram do capitalismo como modo de produção,
apesar de certeira, deixava muito a desejar. Sua discordância principal é
com a ausência, nesses autores, de um delineamento da organização
econômica, social e política do socialismo, ou seja, a ausência de um
desenho da sociedade socialista e de suas instituições.
Além
disso, Singer entende que o socialismo proposto por Marx e Engels
nasceria da própria evolução contraditória do capitalismo,
particularmente de sua fase monopolista, sendo resultado do antagonismo
entre a organização da produção na fábrica individual e da anarquia da
produção na sociedade. Essa contradição levaria à socialização das
forças produtivas e o Estado ocuparia o papel de instrumento de
apropriação dos meios de produção das classes trabalhadoras. A
consequência desse processo seria o desaparecimento das classes sociais
sem que fosse necessária a participação ativa dos trabalhadores no
processo.
Para o autor, essa concepção do socialismo é
insuficiente e deixa sem resposta as perguntas referentes à organização
da sociedade socialista e às estratégias e fórmulas para sua transição.
Além disso, para Singer, a teoria de Marx e Engels inspirou a URSS em
seu governo socialista[10] levando a um crescimento monstruoso do
Estado e não à sua abolição (SINGER, 2000a). A mesma postura perante o
socialismo, diz Singer, foi adotada pela maioria dos partidos operários
após a II Internacional e colocado à prova na Revolução de Outubro.
Naquele momento, a grande discussão que se travou nos quadros
bolcheviques era entre a autogestão e o planejamento centralizado. No
primeiro caso, defendia-se que a expropriação dos meios de produção
deveria ser seguida da efetiva direção coletiva dos trabalhadores. No
segundo, a expropriação dos meios de produção era condição suficiente
para a transição.
Os quadros bolcheviques que defendiam o
planejamento centralizado venceram o debate e a principal consequência
foi que o socialismo passou a ser caracterizado como:
[...]
planejamento geral ou centralizado da produção; substituição do mercado
pela alocação administrativa dos meios de produção; organização
monopolista de todos os ramos de produção e fixação detalhada de metas
para todas as empresas (SINGER, 2000a, p. 22).
O
problema para Singer (2000a) é que apesar de concordar que sem a
socialização dos meios de produção não há socialismo, ele entende que a
participação dos trabalhadores é essencial nesse processo. Ele critica o
planejamento centralizado, marca das experiências de socialismo real,
porque a posse dos meios de produção e a centralização das tomadas de
decisão pelo Estado levam a crer, em um primeiro momento, que os
trabalhadores fazem parte desse processo – já que, em tese, cada cidadão
seria proprietário dos meios de produção. Mas ele chama a atenção para a
ficção jurídica que o fato esconde: “Na prática, o controle jurídico
era exercido pela cúpula do partido, que também era a cúpula do Estado. E
os trabalhadores continuaram tão subordinados quanto no capitalismo”.
(SINGER, 2000b, p. 77).
A crítica ao socialismo soviético, como
vimos, acompanhou a trajetória do economista no PSB e no grupo sionista
Dror. A discussão realizada nestes dois grupos políticos dos quais
Singer fez parte foram fundamentais para a sua formação intelectual e
para a sua militância política. A postura que ambos os grupos adotaram
contra o autoritarismo e as práticas stalinistas e a favor da liberdade
de escolha dos indivíduos aparecem na concepção de socialismo proposta
por Singer.
É por causa dessa preocupação que, em Uma utopia militante,
Singer (1998) vai propor uma distinção entre os conceitos de revolução
social e revolução política. A primeira refere-se a uma revolução de
longo prazo e a uma transformação cultural protagonizada pelos próprios
trabalhadores. A segunda limita as mudanças sociais a um único momento
histórico: a tomada do poder – o que, em sua concepção é um erro.
Ao
distinguir revolução social de revolução política, Singer (1998) se
contrapõe à vertente dos revolucionários que se colocam a favor da
ditadura do proletariado, e assim o faz porque ele a considera um
procedimento autoritário. A distinção, que define o que foi a revolução
social capitalista e o que é a revolução social socialista, também lhe
serve para tomar como duvidosos os efeitos positivos de uma revolução
política socialista. Para ele, enquanto as revoluções políticas
burguesas – ou seja, as revoluções políticas capitalistas –, ajudaram a
criar instituições jurídicas, políticas e sociais que condiziam,
potencializavam e auxiliavam o desenvolvimento do capitalismo, podemos
duvidar dos mesmos resultados provocados pelas revoluções políticas
proletárias ou socialistas.
O resultado é duvidoso porque,
segundo o autor, o processo da revolução social capitalista e socialista
se dá sob uma dinâmica diferente: enquanto a revolução social
capitalista se dá subordinada ao feudalismo, a revolução social
socialista se inicia no século XIX implantando-se no capitalismo ainda
em constituição, por meio de
[...]
instituições destinadas a enfrentar e/ ou compensar as tendências de
concentração de renda e da propriedade, de exclusão social e de
destruição criadora, inerentes à dinâmica do capital. [...] Os implantes
socialistas no capitalismo resultam de algo como um processo de
tentativas e erros (SINGER, 1998, p.132).
É
a partir dessas definições que podemos compreender por que Singer
defende que a cooperativa assume características de uma empresa
autogerida, é um implante socialista na sociedade capitalista e levará à
transição para outro modo de produção[11]. A empresa
autogerida, para ele, é a instituição possível no plano econômico atual,
que vai contra a corrente das tendências capitalistas. Além disso,
somente por meio delas é que podemos superar o fracasso das experiências
de socialismo real. O autor defende que essas experiências foram
resultado da revolução política socialista e que servem como
contraexemplo: o controle dos meios de produção deve ser descentralizado
e ficar sob o domínio direto dos trabalhadores, e devemos rejeitar o
planejamento geral da economia (SINGER, 2000a).
A partir da
recusa do planejamento geral, propõe como seria a organização socialista
da produção. Ela deve seguir alguns princípios: todos os dos pioneiros
de Rochdale[12]; a possibilidade de federação das empresas
autogeridas; a ausência de trabalhador assalariado; criação de
cooperativas de consumidores para evitar a competição entre as empresas
autogeridas; liberdade de iniciativa de pessoas ou grupos com ideias ou
projetos novos; financiamento por bancos públicos dos projetos que
tenham relevância social (SINGER, 2000b). Para o autor, o problema do
planejamento geral é que, ao impedir a liberdade de iniciativa, ele não
permite o desenvolvimento do socialismo entre as bases.
Pelo
fato de não haver permissão para que outro modo de produção competisse
com o planejamento econômico centralizado, as iniciativas dos
trabalhadores acabaram abafadas na URSS e legadas ao estatuto da
ilegalidade. O sistema capitalista, ao contrário do que ocorreu no que
Singer chama de socialismo real, englobaria vários modos de produção:
produção simples de mercadoria, empresas sem fins lucrativos, produção
para subsistência e cooperativas autogeridas. Estas últimas “[...]
constituem um embrião ou ‘implante socialista’” (SINGER, 2000a, p. 47).
Aqui,
o autor reforça a diferença entre as revoluções sociais e políticas: a
revolução política socialista impõe um plano de metas que se sobrepõe às
liberdades individuais e isso, para o autor, é inadmissível. Singer
defende que o socialismo é um projeto em constante construção para se
contrapor à revolução política: o socialismo é uma luta que se realiza
no presente e não após a tomada do poder.
Para melhor
compreendermos o que Singer defende como projeto de superação do
capitalismo por meio da economia solidária, resumo os pontos
fundamentais que dão base à sua concepção de socialismo: 1) contrapõe-se
a qualquer forma de autoritarismo e, como consequência; 2) contrapõe-se
ao planejamento centralizado da economia; 3) defende a autogestão da
produção, do trabalho e do consumo como modo de produção socialista; 4)
assume que este modo de produção já existe e coexiste sob a estrutura
capitalista; 5) defende que é por meio da vivência neste modo de
produção que se dará a sua dominância, sem a necessidade de que haja uma
revolução política socialista; 6) e dominância aconteceria após o
aprendizado cooperativo, no trabalho e nas escolas; 7) o socialismo,
ainda que se torne modo de produção dominante, conviverá com outros
modos de produção, assim como faz o capitalismo, devendo, portanto,
estar em construção contínua.
Economia solidária: continuidade histórica ou descontextualização?
Tentando
responder às críticas que fez a Marx e Engels, Singer define a economia
solidária como um novo modo de produção que tem a cooperativa de
produção como o empreendimento solidário ideal e a autogestão como
princípio organizador. Além disso, cita as experiências da Sociedade dos
Pioneiros de Rochdale e do Complexo Cooperativo de Mondragón como
exemplos do projeto de economia solidária, defendendo que ela é a
continuidade das lutas dos trabalhadores do século XIX. Por meio desse
argumento, dá corpo às oposições que faz entre revolução política e
revolução social ao mesmo tempo em que comprova a viabilidade do seu
projeto.
O problema é que, ao elencar tais exemplos, ele não
questiona se os princípios dos Pioneiros de Rochdale, nos quais se
apoia, não se restringem a uma prática democrática que não toca, a
fundo, a questão da relação de dominação que o capital exerce sobre os
trabalhadores. Afinal, ao localizarmos essa experiência historicamente,
percebemos que o princípio um sócio, um voto remetia às lutas por
uma maior participação política na sociedade – o voto, naquela época,
era censitário (COLE, 1944). Além disso, a Sociedade dos Pioneiros foi
organizada a despeito da organização social do trabalho nas indústrias, e
dizia respeito aos artesãos excluídos ou resistentes à entrada nas
fábricas. Esses trabalhadores qualificados[13], buscando dar continuidade à sua diferenciação perante os trabalhadores não-qualificados[14]
– negando, inclusive, o trabalho indiferenciado nas fábricas –, montou
um clube de trocas que tinha a função de tornar seus produtos vendáveis
já que, com a produção em massa e a diminuição do tempo e dos custos
da produção, a competição com os produtos industrializados deixava esses
produtores cada vez mais excluídos do mercado.
Acredito,
inclusive, que esse pode ter sido um dos fatores que levou o movimento
sindicalista a se afastar do movimento cooperativista. Ambos nasceram em
meio à Revolução Industrial e, com o tempo e o desenvolvimento do
socialismo teórico, as demandas de um e de outro movimento se
diferenciaram. Eles só uniram forças em um prazo muito curto de tempo.
Tempo suficiente para que as experiências cooperativas mostrassem não
serem capazes de incluir todos os trabalhadores em seu projeto. As
cooperativas do século XIX não eram acessíveis a todos os trabalhadores.
Apenas os pequenos produtores ou detentores de algum capital podiam
participar como sócios (THOMPSON, 2002; COLE, 1944; COLE; POSTGATE,
1981).
Com essas ponderações, procuro mostrar como é
problemática a apropriação que Singer faz dos elementos de uma
experiência que tem quase dois séculos de diferença em relação ao seu
projeto de economia solidária. A continuidade que o autor atribui às
duas experiências acaba por deixar de lado as especificidades históricas
de cada período. Dispensa, por exemplo, a análise da disputa do poder e
de sua composição no universo capitalista. A relação de dominação de
classes que se realiza no Estado capitalista não aparece em sua
discussão. É assim, por exemplo, que o neoliberalismo, materializado em
decisões políticas ou como ideologia incorporada no discurso e na
prática dos indivíduos, some de cena na discussão da economia solidária.
Esse projeto aparece, em seu discurso, em um cenário de crise econômica
no qual a esquerda buscava uma nova alternativa ao capitalismo. Também
foi em meio a uma crise econômica e à construção de um projeto
alternativo ao capitalismo que o movimento cooperativista inglês surgiu
em meados do século XIX. As crises, sem as especificidades históricas
que as definem e explicam, formam um modelo que permite o transporte das
experiências do passado para o presente sem que haja a necessária
contextualização histórica. Esse mesmo expediente de transposição,
Singer realiza com a experiência de Mondragón (Espanha), quando a toma
como exemplo da vigência da economia solidária em um contexto atual.
Nesse
caso, o tratamento dado ao Complexo Cooperativo de Mondragón (CCM) como
uma experiência descontextualizada a despe de suas especificidades
históricas e locais. Não permite, portanto, a compreensão dos principais
elementos que, em combinação, permitiram a constituição e o
desenvolvimento dessa experiência.
Kasmir (1996), por exemplo,
mostra como elementos de análise importantes para compreendermos o CCM e
sua história, ficam de fora quando não os relacionamos com a luta pela
autonomia do povo basco nem com a ligação da primeira cooperativa
formada em Mondragón com o Partido Nacionalista Basco, apoiado pela
Igreja Católica espanhola e pela ditadura franquista. Esses fatores, diz
a autora, são indispensável para compreendermos o porquê de o projeto
cooperativista não ter sido combatido pelo governo central.
Sem essa contextualização, não fica claro que a primeira cooperativa que dá origem ao complexo fazia parte do projeto do grupo Ação Católica
de arrefecer a luta de classes em uma região da Espanha que era
conhecida pela resistência operária. Também não fica claro que o sucesso
da primeira cooperativa e sua transformação em complexo combinados ao
recrudescimento da luta pela independência do país Basco tornam essa
experiência um componente da construção da identidade basca e um pilar
estratégico da autonomia econômica da região até os dias de hoje
(KASMIR, 1996).
Breve debate sobre a transição
Ao
avaliar o movimento cooperativista como um dos dois aspectos
compensadores que ele vê no movimento operário após as Revoluções de
1848[15], no Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores,
escrito em 1864, Marx alertou para que “[...] o valor dessas grandes
experiências sociais não seja superestimado” (MARX, 1988, p.319).
Assim,
apesar dos elogios que teceu ao movimento cooperativista, avalia que
ele não levará à transformação alguma se continuar sendo fruto de
manifestações isoladas. Para ele, a única maneira de o cooperativismo salvar
os trabalhadores é desenvolvê-lo em dimensões nacionais e fazê-lo ser
incorporado e incrementado por meios nacionais. Mas Marx entende que
isso só seria possível após a conquista do poder político pela classe
operária, sendo esta a sua tarefa principal. Enquanto ela não fosse
realizada
Os
senhores da terra e os senhores do capital usarão sempre seus
privilégios políticos para a defesa e perpetuação de seus monopólios
econômicos. Em vez de a promoverem, continuarão a colocar todos os
obstáculos possíveis no caminho da emancipação do operariado (MARX,
1988, p. 320).
O
elemento da luta política, essencial para Marx pensar a transição, é o
elemento que desaparece em Singer. Como vimos, ao definir sua concepção
de socialismo, o autor se afasta da revolução política e coloca a
revolução social como o processo que, por si só, levará à passagem do
modo de produção capitalista para o socialista, ou à dominância do modo
de produção socialista sobre o capitalista.
Uma primeira crítica
que podemos fazer à visão de Singer sobre o socialismo vem de uma
discussão da marxista ortodoxa Maria Turchetto (2005), que vai contestar
as similaridades entre a transição do feudalismo para o capitalismo e
do capitalismo para o socialismo e mostrar as incongruências teóricas
geradas por aqueles que baseiam seu pensamento nesse modelo.
A
autora explica que o modelo de convivência entre diferentes modos de
produção que disputam a dominância, como defende Singer, é nomeado na
literatura marxista de formação social. Esse conceito busca
mostrar que não há modo de produção em estado puro e que, nas sociedades
historicamente concretas, há “[...] uma combinação, uma articulação de
modos de produção diversos organizados em torno de uma determinada forma
dominante de relações sociais de produção”. (TURCHETTO, 2005, p.48).
O
modo de produção dominante decidiria a posição e a influência dos
outros modos de produção, adequando para si suas relações sociais. Dessa
forma, o modo de produção dominante conviveria tanto com elementos que
constituíam formas produtivas anteriores quanto com elementos que
constituiriam futuras formas produtivas. Turchetto (2005) explica que
essa análise se aplica para a explicação da transição do feudalismo para
o capitalismo porque a convivência entre os dois modos de produção era
possível.
Isso porque se tratavam de duas formas de dominação
distintas: enquanto o feudalismo se baseava na exploração extraeconômica
dos servos pelos proprietários da terra, o capitalismo se baseava na
exploração econômica dos trabalhadores. A passagem de uma forma de
produção para a outra se deu justamente porque o capitalismo rompeu com a
necessidade da exploração extraeconômica típica do feudalismo.
Isso
ocorreu na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas e de
novas formas de organização do trabalho expropriou os trabalhadores do
domínio sobre a técnica da produção e eles se tornaram incapazes de
realizar sozinhos todas as tarefas necessárias para a produção de um
produto. É a partir da subsunção real do trabalho ao capital, portanto,
que a passagem do feudalismo para o capitalismo se concretiza.
É
justamente a ruptura com a subsunção real que Singer propõe que seja
realizada por meio da economia solidária: com a autogestão, os
trabalhadores retomariam o conhecimento de todo o processo de trabalho e
aboliriam a subsunção real do trabalho ao capital. A subsunção formal
aboliria no momento em que a propriedade privada dos meios de produção
desaparecesse sob a forma da propriedade coletiva da cooperativa ou da
empresa autogerida.
Acontece que a transição do feudalismo para o
capitalismo, na condição da passagem da subsunção formal para a
subsunção real do trabalho ao capital, é também o que determina a
formação de uma divisão social do trabalho tipicamente capitalista. E é a
partir do conjunto desses elementos que as relações sociais
capitalistas se estabeleceram. Cria-se, assim, uma formação social
específica, com instituições próprias e um aparato jurídico-legal
construído para que o processo de valorização, central na reprodução do
capitalismo, continue em vigor. A valorização, que permite ao capital se
auto-reproduzir, é, segundo Turchetto (2005), o diferencial do modo de
produção capitalista em relação a outros modos de produção.
É nesse sentido que Turchetto (2005) critica os teóricos da transição que a pensam sem a necessidade do salto revolucionário,
que ela entende pela tomada do poder estatal por parte do
proletariado. Ao ignorar esse passo, tais teóricos defenderiam um
processo gradual de mudança, sem marcos de ruptura precisos, e
considerariam o socialismo como um modo de produção estável, que só
precisaria se aperfeiçoar para se tornar dominante. Para a autora, o
socialismo é a sociedade de transição, e o comunismo, a sociedade em que
a mudança estaria consolidada.
Turchetto (2005) defende, a
partir do entendimento de que o gradualismo não define marcos de
ruptura, que os novos modos de produzir que aparecem no capitalismo são,
na verdade, novas formas de consumir, distribuir e de promover a
circulação de bens, que não afetam a estrutura das relações de produção.
A permanência da relação de produção capitalista leva à
continuidade da divisão social do trabalho capitalista que, por sua vez,
reproduz as relações sociais próprias da sociedade burguesa. Isso leva a
crer que a transição não pode ser configurada como uma fase de
coexistência de modos de produção nem como uma fase de adequação das
forças produtivas às relações de produção comunistas já instaladas.
A
passagem do capitalismo para o comunismo não se resume, portanto, à
substituição de uma exploração por outra – a extraeconômica pela
econômica –, como ocorreu na passagem do feudalismo para o capitalismo.
Trata-se, segundo Turchetto (2005) de abolir toda forma de exploração e
de divisão em classes. E o processo de instauração dessa nova forma de
sociedade não pode correr “[...] ao lado do modo de produção
capitalista, na medida em que coincide com a eliminação deste último”
(TURCHETTO, 2005, p.53).
Com isso, o que Turchetto (2005) quer
demonstrar é que assim como cada modo de produção tem suas
especificidades, também a transição de um modo de produção a outro deve
ser pensada como diferente da anterior. Nesse sentido, a autora destaca
que a dominância do modo de produção capitalista não permite que
relações de produção diferentes coexistam com ela. Sua dominância – ela
admite que o modo de produção capitalista não existe em estado puro –, é
derivada dessa sua característica de auto- reprodução e de resistência à
influência dos outros modos de produção. Ao contrário do modo de
produção feudal, o modo de produção capitalista não permitiria a
existência de interstícios nos quais um novo modo de produção possa se
desenvolver, coexistir e disputar a dominância (TURCHETTO, 2005).
Podemos
discordar da avaliação de Turchetto (2005) de que a tomada do poder do
Estado é condição necessária para a passagem de um modo de produção ao
outro, assim como do tratamento que ela dá ao socialismo e ao comunismo.
Mas sua análise nos traz a possibilidade de questionar a proposta de
transição de Singer na medida em que demonstra que a passagem de um modo
de produção a outro não obedece a uma estrutura predeterminada, e que a
dinâmica do processo de transição muda conforme mudam as
especificidades do modo de produção dominante.
O modo de
produção capitalista coexistiu com o feudal e o superou porque existiam
elementos políticos, sociais e econômicos que permitiram essa
coexistência e essa passagem. Como Turchetto (2005) nos faz entender, o
capitalismo se constituiu, em certa medida, com a ajuda do feudalismo e
só se tornou viável porque não disputava, com ele, a mesma forma de
dominação. Tornou-se viável, nesse sentido, política, econômica e
socialmente, porque a base mercantil, na qual ele se apoiava,
necessitava de uma formação social que lhe desse espaço para se
consolidar. A burguesia nascente, excluída do universo de obrigações
feudais, foi ganhando espaço. E, à medida que novas técnicas de produção
e novas formas de organizar o trabalho foram aparecendo, na forma da
manufatura e da grande indústria, a produção de mercadorias e as novas
relações sociais que ela encetou, tornaram o capitalismo o modo de
produção dominante.
Posso dizer, a partir disso, que sem a
presença dessas mesmas condições não é possível pensar em uma transição
que obedeça a mesma lógica da passagem do feudalismo para o capitalismo.
Portanto, não é possível afirmar que o capitalismo dá espaço para que
outro modo de produção se consolide, coexista e compita com ele. Sua
lógica de auto- reprodução, pautada pelo processo de valorização, é o
fator que leva o modo de produção capitalista a ocupar todos os espaços e
até a incorporar em sua dinâmica formas alternativas de organização da
produção, o que pode ser visto no próprio cooperativismo atual, que se
insere no mercado capitalista. O maior exemplo disso é o Complexo
Cooperativo de Mondragón, que chegou a constituir empresas
multinacionais e reproduz, em outros países, relações de assalariamento
típicas do capitalismo, reproduzindo a relação entre proprietários (os
cooperados que têm a propriedade coletiva da empresa e de seus lucros) e
os trabalhadores assalariados.
Para melhor compreender essa
afirmação, é necessário apresentar a discussão que Gaiger (2005) se
propôs a fazer sobre a categoria marxista de modo de produção que vai,
em certo sentido, se opor à interpretação de Turchetto (2005). Nessa
discussão, Gaiger vai dizer que o espaço para a coexistência de outros
modos de produção não existe no capitalismo – ao contrário do que
afirmou Turchetto, para quem a convivência existe, mas em uma relação
que é subordinada. Essa concepção de Gaiger (2005) nos dá elementos para
embasarmos uma segunda crítica ao projeto de Singer.
Gaiger
(2005) retoma a definição, proposta por Godelier (apud GAIGER, 2005),
entre modo de produção e modo material de produção. O modo de produção
só existe se um modo material de produção que lhe seja apropriado
estiver consolidado. Com isso, ele quer dizer que para que um modo de
produção exista é necessário que haja uma composição dos elementos e das
formas materiais de trabalho necessários para a reprodução das
condições materiais de existência.
Ele explica que modos
materiais que produzem bens semelhantes podem se valer de bases técnicas
distintas, o que demonstra que “[...] um modo material de produção não
existe jamais isolado dos arranjos sociais do processo de trabalho”
(GAIGER, 2005, p.2). Ou seja, um modo de produção engendra uma
totalidade que agrega as relações sociais ao processo de produção,
distribuição circulação e consumo de bens de produção.
O autor
defende que o capitalismo transforma continuamente sua base técnica e
realiza, com isso, “[...] o que mais importa num modo de produção:
instaura o processo que vem a repor a sua própria realidade, a
reproduzi-la historicamente” (GAIGER, 2005, p.2). Nesse sentido, ele
entende que não podemos chamar de modo de produção as formas econômicas
que não possuam uma estrutura político-econômica como a capitalista, que
é capaz de reconstruir, com autonomia, suas relações de exploração e
dominação a partir de novas formas de organização do trabalho e da
produção.
Foi isso o que aconteceu, por exemplo, com o fordismo e
a acumulação flexível no capitalismo: formaram estratégias distintas de
repor o processo de valorização do capital. No caso da acumulação
flexível, ela é composta de formas variadas de organização do trabalho.
Em cada uma dessas formas, as relações de produção ganham uma aparência
diversa e essa aparência pode nos levar a concluir que se trata de modos
de produção diferentes. Mas a despeito da aparência, essas formas
distintas de organizar o trabalho participam de uma mesma estratégia de
acumulação capitalista. O que existe dentro do capitalismo não são, a
partir dessa perspectiva, outros modos de produção, mas sim formas
sociais de produção atípicas. Nesse sentido, apesar de a economia
solidária se basear em relações sociais de produção distintas da
economia capitalista, suas inovações se concentram nas relações e
práticas internas dos empreendimentos solidários.
Um exemplo que
Gaiger (2005) utiliza são as cooperativas dos assentamentos rurais, que
funcionam com uma lógica própria, baseada na propriedade coletiva da
terra, mas cuja base técnica não se altera, é a mesma do capitalismo.
Além do que, é com os agentes desse modo de produção que eles negociam
sua produção. O mesmo vale para as cooperativas de produção que estão
vinculadas a cadeias produtivas ou atuam como terceirizadas. Essa falta
de autonomia leva Gaiger (2005) a concluir que a emancipação do
trabalho proposto pela economia solidária é incompleta. É nesse sentido,
diz ele, que não podemos pensá-la como um novo modo de produção, pois
ela não se coloca como alternativa ao capitalismo.
A isso,
acrescento: mais do que não se colocar como alternativa ao capitalismo,
ela atua como uma das formas de organização de trabalho diferenciadas
que contribuem para sua reprodução. Em tempos de acumulação flexível do
trabalho, cooperativas ou empreendimentos econômicos solidários podem
ser funcionais ao atuar como terceiras ou se inserirem em uma cadeia
produtiva. Participam ativamente da reprodução do capital. Ou ainda,
como avalia Gaiger (2005), sofrem uma subsunção inversa do trabalho ao
capital, porque a única maneira dessas formas sociais atípicas
sobreviverem é adotar a base material do capitalismo.
Conclusão
Apesar
de não concordar inteiramente com a tese defendida por Poulantzas
(1980) no que se refere à concentração do poder no Estado, acredito que o
autor esteja certo quando defende que ele possui um caráter estratégico
para a reprodução do capital e que essa sua característica é derivada
do fato de nele estarem em disputa perspectivas de classes diversas, sem
que isso, no entanto, altere a dominação da classe capitalista que ele
expressa. O Estado reproduz, nesse sentido, as relações de poder
presentes na sociedade capitalista.
Como defende Artous (1999) o
conceito de cidadania que o Estado capitalista propõe aos indivíduos,
por exemplo, nasce em um momento em que se forja uma igualdade entre
trabalhadores e capitalistas, enquanto cidadãos, à luz dos direitos
políticos e civis por ele formalizados. Essa igualdade formal não
corresponde, no entanto, a uma igualdade real entre esses dois grupos,
mas, assim como a mercadoria e o conceito de valor escondem a extração
de mais-valia do trabalhador pelo capitalista, a cidadania construída
pelo Estado capitalista, fetichiza as relações sociais e faz os
indivíduos acreditarem que estão submetidos aos mesmos pesos e medidas.
É
nesse sentido que acredito que a socialização dos meios de produção, a
educação autogestionária e o autogoverno generalizado, como propostos
por Singer via propriedade coletiva dos associados de uma cooperativa,
não sejam suficientes para pensarmos, à luz das reflexões apresentadas,
na passagem para uma sociedade não- capitalista. Entendo que os
mecanismos de auto-reprodução do capital estejam garantidos por sua
materialidade no plano jurídico-formal do Estado. É por isso que a
mudança na forma de acumulação do capital, iniciada na década de 1970,
foi acompanhada de uma mudança nas políticas implementadas pelos Estados
nacionais e de uma série de modificações em suas legislações.
O
Brasil dos anos de 1980 e 1990 é um exemplo de como a acumulação
flexível é acompanhada da retórica neoliberal e de uma série de reformas
econômicas e legais que permitem a reestruturação produtiva ganhar
corpo e se espalhar pelas empresas, fábricas e todos os setores
econômicos do país.
Sem a compreensão da lógica pela qual atua a
auto-reprodução do capital, que é amparada por um Estado atravessado
pelos interesses da classe capitalista, que assegura suas demandas em
termos de políticas governamentais e em um corpo jurídico-formal, não
podemos pensar em uma transformação social possível.
Singer, ao
deixar de lado essa discussão, acaba por atribuir apenas aos indivíduos e
à sua ação política, a capacidade de transformação. Mas, como alerta
Gaiger (2005), é preciso identificar as coerções intransponíveis, que descartam certas possibilidades
em cada momento histórico. Não que a transformação não seja possível,
mas para que ela se torne concreta é preciso que levemos a sério os
mecanismos de coerção aos quais estamos submetidos e construamos
propostas que visem enfrentá-los e modificá-los. Nos marcos do
capitalismo, acredito que sem a transformação do Estado, de seus
aparelhos e de sua materialização jurídico-legal, não é possível pensar
em uma sociedade que não priorize a valorização do capital.
A
economia solidária, no presente histórico, é coagida a se submeter à
ordem do capital à custa de não se tornar viável economicamente. É nesse
sentido que defendo que a economia solidária como proposta por Singer,
apesar de ser importante para minorar as mazelas do desemprego, não tem
se constituído de fato em uma alternativa ao capitalismo. Por mais que
as cooperativas e os empreendimentos econômicos solidários exercitem,
internamente, valores democráticos, igualitários e equitativos, para
sobreviver eles se submetem à cadeia produtiva capitalista, seja na
venda de seus produtos ou serviços, seja porque se subordinam às
empresas capitalistas por meio das terceirizadas.
Nessa equação,
elas servem mais como mecanismos de geração de trabalho e renda – que
têm atuado também como barateadores dos custos de produção de empresas
ou indústrias capitalistas, tornando- se auxiliares do processo de
valorização do capital -, do que como embriões de um novo modo de
produção, alternativo ao capitalismo.
= = =
Notas:
[1] Este texto é resultado da minha dissertação de mestrado financiada pelo CNPq.
[2] Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil. bacastro@gmail.com
[3] Em Castro (2009), defino um eixo cronológico-temático para encadear melhor os argumentos de Singer sobre a economia solidária, já que seus textos são inúmeros e neles as concepções de economia solidária variam. São cinco os eixos principais: A) luta contra o desemprego; B) continuidade histórica das lutas dos trabalhadores; C) forma de organização e riscos de degeneração dos empreendimentos solidários; D) novo modo de produção; E) autogestão.
[4] Em hebraico, pássaros da liberdade. Também é o nome de um movimento juvenil pioneiro sionista e socialista estabelecido na Polônia no final dos anos de 1920 cujas ideias chegaram ao Brasil com os imigrantes, na década de 1930. O grupo se reuniu pela primeira vez em Porto Alegre, em 1945, mas não há data precisa de fundação do grupo de São Paulo. Estima-se que seja por volta de 1947. O Dror teve grande expansão a partir da fundação do Estado de Israel, em 1948. Na sede de São Paulo, por exemplo, o número de membros passou de 100 para 800 naquele ano (PINSKY, 2000). Foi neste período que Paul Singer se associou ao movimento.
[5] Sionismo é um movimento político que defendia a autodeterminação e a fundação de um Estado próprio para o povo de origem judaica.
[6] Fonte das gerações, em hebraico.
[7] Em Castro (2009), mostrei que Singer defende que a economia solidária é uma continuidade do movimento cooperativista do século XIX, tendo renascido no século XXI.
[8] A COPPE construiu a primeira Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) em 1995.
[9] Selecionei dois textos, Uma utopia militante, de 1998 e Economia socialista, de 2000. O primeiro é um trabalho de fôlego historiográfico que buscava contestar as visões dominantes sobre o socialismo e indicar novas propostas e caminhos para o seu alcance efetivo. O segundo é fruto do Seminário Socialismo e Democracia que o Instituto Cidadania, a Fundação Perseu Abramo e a Secretaria Nacional de Formação do PT promoveram em São Paulo, de abril a junho de 2000.
[10] É importante destacar que há um debate sobre a utilização do termo socialista para designar o regime soviético. Bettelheim (1983), em A luta de classes na União Soviética, enxerga na URSS das décadas seguintes à Revolução de Outubro uma sociedade dual, com práticas socialistas e não-socialistas. E é essa dualidade, para ele, que retira da URSS o rótulo de ter realizado o socialismo após a revolução.
[11] Cabe ponderar, no entanto, que a economia solidária não é considerada por Singer (1998), em Uma economia socialista, como o único caminho para o socialismo. Há uma série de frentes nas quais os movimentos operário e socialista devem avançar (como a expansão da democracia e da participação, implementação de políticas públicas, incentivos públicos a empresas autogestionárias etc.) para que a economia socialista se consolide. Em Castro (2009) mostro, no entanto, que em seus escritos posteriores, Singer define a economia solidária como um modo de produção singular, que supera o capitalismo. Entendo que haja uma diferença fundamental nos textos em que ele escreve para fins acadêmicos e nos que ele escreve para fins militantes (apesar de essas características não se encontrarem divorciadas em sua trajetória, sendo esta, aliás, sua maior qualidade). Nos últimos, a articulação com as propostas dos programas do PT se coloca de maneira direta e clara. Nos primeiros, o impacto das relações de trabalho solidárias aparece como o núcleo central da transformação da sociedade.
[12] Seus princípios eram: 1) gestão democrática – para cada sócio, um voto; 2) abertura a todos que quisessem integrá-la, desde que contribuíssem para a cota de capital mínima; 3) limitação da remuneração do capital a uma porcentagem fixa – para evitar que o excedente fosse apropriado indevidamente; 4) divisão equitativa dos excedentes; 5) vendas à vista; 6) produtos de qualidade; 7) promoção de uma educação cooperativista para os sócios; 8) neutralidade política e religiosa. A obediência ao conjunto dessas regras é que teria assegurado a viabilidade econômica e o caráter socialista da Sociedade dos Pioneiros (SINGER, 1998).
[13] Os artesãos perderam a propriedade dos instrumentos de produção e dos produtos de seu trabalho, além da habilidade técnica e do conhecimento para produzir um produto e alguns resistiram a esse processo formando associações e/ou cooperativas.
[14] Passado o intervalo geracional entre o início da manufatura e a consolidação da grande indústria, os antes aprendizes de artesãos tornaram-se operários, especializaram-se em uma função e perderam o conhecimento do processo geral de produção.
[15] Marx (1988) diz que após a derrota das revoluções de 1848, as organizações e publicações do movimento operário foram esmagadas na Europa e seus elementos mais esclarecidos ou fugiram para a nova República formada na América, ou foram levados a trabalhar nas novas minas de ouro na Austrália e na Califórnia com a promessa de ganhar mais e trabalhar menos. Mas houve dois momentos compensadores para o movimento operário após as revoluções. O primeiro foi a aprovação da jornada de trabalho de 10h, o segundo, o movimento cooperativista.
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Referências
ARTOUS, A. Marx, l’état et la politique. Paris: Éditions Syllepse, 1999.
BETTELHEIM, C. A luta de classes na União Soviética. Segundo período: 1923- 1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. v.2.
CASTRO, B. A economia solidária de Paul Singer:
a construção de um projeto político. 2009. Dissertação. (Mestrado em
Ciência Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
COLE, G.D.H. A century of co-operation. London: George Allen & Unwin Ltd, 1944.
COLE, G.D.H.; POSTGATE, R. The common people (1746-1946). 4. ed. London and New York: Methuen, 1981.
GAIGER, L. I. “A economia solidária diante do modo de produção capitalista”. Leituras Cotidianas,
n. 127, p. 1-13, jan., 2005. Disponível em: <http://
br.geocities.com/mcrost 07 /20050117a _ a _ economia _ solidaria _ diante_do_modo_de_producao_capitalista.htm#_ednref3>, Acesso
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KASMIR, S. The myth of Mondragón: cooperatives, politics, and working-class life in a Basque Town. Albany: State University of New York Press, 1996.
LECHAT, N. Trajetórias intelectuais e o campo da economia solidária no Brasil.
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MARX, K. “Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores”. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa- Omega, 1988, p. 313-321.
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Resumo: Singer define a economia solidária como um projeto político: ela é um modo de produção diferente do capitalista, que leva à sua superação. Neste artigo, pretendo mostrar de que maneira sua biografia contribui para uma definição específica de socialismo e as limitações que ela traz para a construção de seu projeto político. Para tanto, apresento brevemente sua trajetória militante seguida do debate teórico e político que ele realiza sobre o socialismo e a isso contrasto o debate marxista sobre a transição. Concluo pontuando as limitações que sua visão sobre o socialismo traz para a construção de seu conceito de economia solidária. Palavras-chave: economia solidária, Paul Singer, socialismo.
The socialism of Paul Singer and the limits of his solidarity economy's political project
Abstract: Singer defines solidarity economy as a political project: it is a different mode of production, distinct from the capitalist one and that aims to lead to its overcoming. This paper intends to show how Singer’s biography contributes to a construction of his specific definition of socialism and the limitations it brings to build his political project. I present briefly his militant trajectory followed by the theoretical and political debate about socialism and I contrast it whit the Marxist debate on the transition. I draw the conclusions by pointing out the shortcomings that his vision of socialism brings to its concept of solidarity economy.
Keywords: solidarity economy, Paul Singer, socialism.
CASTRO, B. G. “O socialismo de Paul Singer e os limites de seu projeto político de economia solidária”. In: ORG & DEMO (Marília), v. 11, n.2, p. 23-44, Jul./Dez., 2010.
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