sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Horkheimer, do antiautoritarismo ao filocolonialismo


por Domenico Losurdo

A incompreensão e a negação da questão colonial atingem o ápice numa corrente de pensamento à qual também devemos análises brilhantes e agudas dos problemas sociais, políticos e morais, próprios da sociedade capitalista. Refiro-me à Escola de Frankfurt. Ao publicar O Estado autoritário, em 1942, Horkheimer faz um balanço do capítulo de história iniciado com a Revolução de Outubro. O juízo de condenação é claro e sem meios-termos: na Rússia afirmou-se não o socialismo, mas o “capitalismo de Estado”. Claro, cabe reconhecer que “este fortalece a produção” de maneira extraordinária e isso é de grande vantagem para “os territórios atrasados da terra”, que em pouco tempo podem superar o atraso em relação aos países mais avançados[1]. Ao menos isso poderia ser considerado um resultado positivo? Na realidade, é certo que a Rússia governada com punho de ferro pelos bolcheviques obteve enorme sucesso no desenvolvimento industrial e econômico, a ponto de se tornar um modelo, mas quem se sensibiliza com isso?

Ao invés de se transformar numa democracia participativa e de conselhos, o grupo [o Partido Comunista] pode fixar-se como autoridade. Trabalho, disciplina e ordem podem salvar a república e liquidar a revolução. Apesar de ter afirmado que a supressão dos Estados fazia parte de seu programa, aquele partido transformou sua pátria industrialmente atrasada no modelo secreto daquelas potências industriais que sofriam com seu parlamentarismo e já não podiam viver sem o fascismo.[2]

Enquanto essas linhas eram escritas, o Exército nazista, tendo dominado boa parte da Europa, está às portas de Moscou e Leningrado, cujos habitantes estão ameaçados de morte por uma assustadora máquina de guerra ou por um assédio impiedoso e pela fome por ele infligida. Em tais circunstâncias, que sentido tem invocar a “democracia participativa e de conselhos” e até mesmo o ideal ou a utopia da extinção do Estado? É o momento em que aparece estar ao alcance das mãos a realização do projeto de Hitler, destinado explicitamente a escravizar os povos da Europa oriental de modo a edificar ali um grande império colonial de dimensão continental.

Se, apesar de submetida à colossal pressão exercida por um aparato militar gigantesco e de experimentada eficiência e brutalidade, a União Soviética consegue resistir, é graças ao desenvolvimento industrial a toque de caixa evidenciado pelo próprio Horkheimer. Porém, ele não dá nenhuma importância a tudo isso, considera irrelevante o fato de que o que está em jogo é o conflito entre colonialismo e escravismo, de um lado, e anticolonialismo e antiescravismo do outro. Aos olhos do prestigiado expoente da “teoria crítica”, é justamente o país nascido da Revolução de Outubro – e prestes a ser escravizado (depois que sua população foi dizimada) – que merece um juízo mais severo:

A espécie mais coerente de Estado autoritário que se libertou de toda dependência do capital privado é o estatismo integral ou socialismo de Estado [...]. No estatismo integral é decretada a socialização. Os capitalistas privados são abolidos [...]. O estatismo integral não significa uma diminuição, mas, ao contrário, uma potencialização das energias, pode viver sem ódio racial.[3]

E mais uma vez nos deparamos com a falta de criticidade da teoria crítica: parece irrelevante a diferença entre um país empenhado em impor um Estado racial, decidido a dizimar e a escravizar as “raças inferiores”, bem como a exterminar os grupos políticos e étnicos (bolcheviques e judeus) rotulados como instigadores da revolta das “raças inferiores”, e um país que sabe estar entre as vítimas predestinadas de tal Estado racial e do qual se defende desesperadamente.

Mesmo com o olhar voltado para o passado e para o plano da filosofia da história em geral, Horkheimer presta pouca ou nenhuma atenção à questão colonial (e racial): “A Revolução Francesa era tendencialmente totalitária”[4]. Assim, torna-se alvo a revolução que, no início da era contemporânea, em São Domingos, estimulava a grande sublevação dos escravos negros e, em Paris, forçava a Convenção jacobina a decretar a abolição da escravidão nas colônias. Imunes às suspeitas de totalitarismo ou autoritarismo restam as duas revoluções inglesas do século XVI e a revolução americana do século XVIII, que impulsionavam a instituição da escravidão e que, no caso da República norte-americana, comportavam a primeira aparição do Estado racial (não por acaso, nas suas primeiras décadas de vida, presidido quase sempre por proprietários de escravos).

A condenação da Revolução Francesa não conhece limites. “O ‘sans-cullote Jesus’ anuncia o Cristo nórdico”[5]. A figura evocada pelas correntes mais radicais da Revolução Francesa, com a finalidade de derrubar de uma vez por todas a barreira quase naturalista que no Antigo Regime separava as classe populares das elites, é equiparada à figura elaborada pela cultura reacionária que desemboca no nazismo e está empenhada em restabelecer a barreira natural entre povos e “raças”, a barreira que fora varrida pela épica rebelião dos jacobinos negros de São Domingos/Haiti e pela abolição da escravidão negra em Paris, sancionada por Robespierre.

Uma vez liquidadas a Revolução Francesa e a Revolução de Outubro, só resta se curvar ao liberalismo miticamente transfigurado e, portanto, identificado com a afirmação e a defesa da “autonomia do indivíduo”[6]. É uma transfiguração que envolve também a figura de Locke, lido como o defensor do princípio segundo o qual todos os homens seriam “livres, iguais e independentes”[7]. E, novamente, como por encanto, desaparecem a escravidão e a defesa da escravidão negra graças a um filósofo que é beneficiário de tal instituição no plano material, por ser acionista da Royal African Company, ou seja, da sociedade que gerenciava o tráfico de gado humano.

Dados esses pressupostos, não surpreendem a desatenção , a desconfiança ou a hostilidade com que Horkheimer observa a revolução anticolonial mundial em curso na sua época. Ele lê a história de seu tempo como o conflito entre “Estados civis” e “Estados totalitários”. Isso vale também para os anos da Guerra Fria: “Devo dizer que se os Estados civis também não gastassem somas enormes com armamentos, há muito já estaríamos sob o domínio dessas potências totalitárias. Se criticamos, temos também de saber que os criticados eventualmente não podem se comportar de outra maneira”[8]. Estamos em 1970: a guerra do Vietnã torna-se mais violenta que nunca, e o seu caráter colonial e as práticas genocidas nela utilizadas são públicos. Entretanto, o maior expoente da teoria crítica não tem dúvidas: o Ocidente “civil’ precisa se defender dos bárbaros do Oriente!

Nem a luta dos afro-americanos contra o persistente regime da white supremacy no Sul dos Estados Unidos põe em xeque as certezas de Horkheimer. Sem dúvida, ele alude à “atual situação difícil das race relations do outro lado do Atlântico”, mas acentua o “terrorismo dos ativistas negros em relação aos outros negros [...], que é muito mais forte do que se pensa”; “o negro médio tem mais medo dos negros”[9] do que dos brancos. No conjunto, a revolução anticolonialista mundial é, para dizer o mínimo, inútil: “a questão dos negros americanos” poderia ser rapidamente resolvida “se não existissem os contrastes entre o Oriente e o Ocidente” e os conflitos com “as partes atrasadas do mundo”[10]. As discriminações contra as quais os afro-americanos combatiam eram atribuídas à Guerra Fria e à própria revolução anticolonial, como se percebe pela referência crítica ao “terrorismo dos ativistas negros” nos Estados Unidos e ao papel do Terceiro Mundo.

Na verdade, aconteceu exatamente o contrário. Em dezembro de 1952, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas, somente depois de ter sido alertada pelo Ministro da Justiça: uma sentença diferente teria radicalizado as “raças de cor” e favorecido o movimento comunista no Terceiro Mundo, bem como nos Estados Unidos[11]. A passagem da desconfiança à hostilidade é rápida:

Nossa teoria crítica mais recente não lutou mais pela revolução porque, após a queda do nazismo nos países do Ocidente, a revolução conduziria a um novo terrorismo, a uma situação terrível. Trata-se, ao contrário, de preservar aquilo que tem um valor positivo, por exemplo, a autonomia, a importância do indivíduo, sua psicologia diferenciada, certos momentos da cultura, sem interromper o progresso.[12]

Essa declaração não parece distinguir Ocidente e Terceiro Mundo, de modo que também a revolução anticolonial então em curso no Vietnã (ou, alguns anos antes, aquela que obteve a vitória na Argélia) são comparadas ou equiparadas a um “novo terrorismo”.

De caráter mais geral é esta outra declaração:
 
A teoria crítica tem a função de expressar aquilo que, em geral, não é expresso. Deve, portanto, ressaltar os custos do progresso, o perigo de que, a partir dele, acabe por desaparecer até mesmo a ideia do sujeito autônomo, a ideia de alma, pois ela parece irrelevante em relação ao universo [...]. Agora queremos que o mundo seja unificado, queremos que o Terceiro Mundo não sofra mais com a fome, ou que não seja mais forçado a viver no limite da fome. Mas, para alcançarmos esse objetivo, teremos de pagar o preço de uma sociedade que se configura exatamente como um mundo administrado [...]. Aquilo que Marx imaginou ser o socialismo, na realidade, é o mundo administrado.[13]
 
Juntamente com o socialismo e com a revolução anticolonial propriamente dita, aqui se condena também o desenvolvimento econômico dos povos que se libertaram ou estão prestes a se libertar do jugo colonial. Somos colocados diante de uma alternativa terrível: conformar-se com a miséria de massa dominante fora do Ocidente ou mergulhar no horror do mundo administrado. E, ao menos para a teoria crítica, a segunda opção é bem pior que a primeira.

= = =
Notas:
[1] Max Horkheimer, “Lo Stato autoritario” [1942], em La società di transizione (org. Werner Brede, Turim, Einaudi, 1979), p. 4, 11 e 22.
[2] Ibidem, p. 8.
[3] Ibidem, p. 11.
[4] Ibidem, p. 9.
[5] Ibidem, p. 10.
[6] Max Horkheimer, “La teoria critica ieri e oggi” [1970], em La società di transizione, cit, p. 175.
[7] Idem, Iclissi della ragione. Critica della ragione strumentale [1967] (trad. E. Vaccari Spaganol, Turim, Einaudi, 1969), p. 30.
[8] Idem, “La teoria critica ieri e oggi” [1970], em La società di transizione, cit, p. 172.
[9] Ibidem, p. 138 e 178.
[10] Ibidem, p. 159.
[11] Ver, neste volume, cap. 6, § 2.
[12] Max Horkheimer, “Lo Stato autoritario”,cit., p. 168-9.
[13] Ibidem, p. 174-5.
= = =
LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Tradução de Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 89-93.
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário