sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Herança e transfiguração do liberalismo em Ernst Bloch

 
por Domenico Losurdo

Apesar da apaixonada denúncia do universalismo e do humanismo, ou melhor, exatamente graças a ela, recalcando significativamente a questão colonial, Tronti e Althusser, paradoxalmente, acabam por convergir para as posições de Bloch, que desde o início também corrobora sem problemas o universalismo e o humanismo de que o Ocidente liberal adora se vangloriar. Ao longo da Primeira Guerra Mundial, vimos o filósofo alemão subscrever a ideologia da Entente, que proclamava querer realizar nos impérios centrais e em todo o mundo a democracia por ela obstinadamente negada aos povos coloniais.

E desde o primeiro Bloch o Ocidente liberal é contraposto positivamente não apenas à Alemanha de Guilherme II, mas também ao país que nasce com a Revolução de Outubro. Em relação a ele, o jovem filósofo expressa um juízo severo antes mesmo da retirada do Exército alemão ou do fim da guerra civil: “Os proletários do mundo não combateram por quatro anos e meio contra a Prússia em nome da democracia mundial para depois abandonar a liberdade e a linha democrática (o orgulho das culturas ocidentais) em nome da conquista da democracia econômico-social” a que remete a Rússia soviética. Como parece miserável esta última quando comparada com a República norte-americana:

Com toda a admiração por Wilson, jamais se poderia pensar, enquanto socialistas, que o sol de Washington um dia pudesse superar o esperado sol de Moscou, que a liberdade e a pureza pudessem vir da América capitalista.[1]

Está em curso um duplo recalque. Ignora-se o fato de que a guerra provocou um clima de terror e caça às bruxas também nos países de tradição liberal mais consolidada e que, graças a sua localização geográfica, se encontram a uma distância segura dos campos de batalha e do perigo de invasão. O recalque mais grave diz respeito, entretanto, à questão colonial. Apenas alguns anos antes, recorrendo a uma repressão impiedosa e até a práticas genocidas, os Estados Unidos celebrados por Bloch haviam conseguido domar a revolução independentista das Filipinas. No próprio território metropolitano, entre os séculos XIX e XX, um regime de white supremacy terrorista atacava os negros, repetidamente submetidos a linchamentos, isto é, a tortura e execução lentas e intermináveis, encenadas como espetáculos de massa para uma festiva comunidade branca.

A segunda Guerra Mundial assiste à irrupção da questão colonial bem além do mundo colonial propriamente dito. Hitler pretende edificar as “Índias alemãs” na Europa oriental, por vezes comparada a uma espécie de Oeste ou Faroeste: da mesma forma que os pele-vermelhas, os “indígenas” que faziam fronteira com o Terceiro Reich precisam ser deportados e dizimados, a fim de que sejam conquistados novos territórios para a raça branca e germânica; os sobreviventes estão destinados a trabalhar como escravos negros a serviço da raça dos senhores. O Império japonês também não se comporta de maneira diferente na Ásia. No entanto, a centralidade assumida pela questão colonial não induz Bloch a nenhum tipo de reanálise.

Em 1961, ele publica Direito natural e dignidade humana. Como se depreende já do título, estamos bem distantes da subestimação da libertas minor, cara a Della Volpe; ao contrário, a reivindicação da herança da tradição liberal é alta e forte. A crítica dirigida a ela continua a ser a que já conhecemos e que o jovem Bloch expressava com palavras de Anatole France: no mundo liberal-capitalista “a igualdade perante a lei significa proibir em igual medida, aos ricos e aos pobres, roubar lenha e dormir sob as pontes”[2]. Em Direito natural e dignidade humana, o filósofo afirma que o liberalismo erra ao propor uma “igualdade formal e apenas formal”. E acrescenta: “Para se impor, o capitalismo visa apenas à realização de uma universalidade da regulamentação jurídica que tudo abarca de igual modo”[3].
 
Essa afirmação pode ser lida num livro publicado no mesmo ano em que, em Paris, a polícia desencadeia uma impiedosa caça aos argelinos, afogados no Sena ou mortos a golpes de cassetete; e tudo isso à luz do sol, ou melhor, na presença de cidadãos franceses que, sob a proteção do governo da lei, assistem divertidos ao espetáculo. Quanta “igualdade formal”! Na mesma capital de um país capitalista e liberal, vemos em curso uma dupla legislação que entrega ao arbítrio e ao terror policial um grupo étnico bem definido[4]. Se, além disso, considerarmos as colônias e semicolônias e voltarmos o olhar, por exemplo, para a Argélia, para o Quênia ou para a Guatemala (país formalmente livre, mas de fato sob o protetorado estadunidense), vemos o Estado dominante, capitalista e liberal recorrendo em larga escala e sistematicamente às torturas, aos campos de concentração e às práticas genocidas tendo como alvo os indígenas. Não há vestígio de nada disso em Bloch.

E os povos coloniais ou de origem colonial continuam ausentes quando o autor de Direito natural e dignidade humana procede à reconstrução histórica da modernidade e do liberalismo. Ele aprecia a orientação jusnaturalista de Grotius e Locke, mas não faz nenhuma menção ao empenho de ambos em justificar a escravidão dos negros; com referência à guerra de independência americana, louva a luta dos “jovens Estados livres”, que mais tarde fundam os Estados Unidos, mas silencia sobre o peso da escravidão na realidade político-social e na própria Constituição federal norte-americana[5].

Tal silêncio é ainda mais singular devido ao fato de que precisamente naqueles anos se desenvolve na república do outro lado do Atlântico a luta dos afro-americanos pela liquidação definitiva do regime de supremacia branca. É um episódio que atrai a atenção de Mao Tsé-tung em Pequim, e pode ser interessante comparar os posicionamentos de duas personalidades tão diferentes uma da outra. O filósofo alemão denuncia o caráter meramente “formal” da igualdade liberal e capitalista; o dirigente comunista ressalta o vínculo entre a desigualdade social e a desigualdade racial: os negros sofrem uma taxa de desemprego muito mais alta que os brancos. são confinados nos segmentos inferiores do mercado de trabalho e forçados a se contentar com salários mais baixos. Mao não se restringe a isso: também ressalta a violência racista desencadeada pela autoridades do Sul e pelos grupos por ela tolerados ou encorajados e saúda “a luta do povo negro americano contra a discriminação racial e pela liberdade e igualdade de direitos”[6]. Bloch critica a revolução burguesa por ter limitado “a igualdade à igualdade política”[7]; em relação aos afro-americanos, Mao ressalta que “a maior parte deles não tem direito de voto”[8]. Reduzidos a mercadoria e desumanizados por seus opressores, por séculos, os povos coloniais conduziram batalhas memoráveis pelo reconhecimento, mas em Bloch podemos ler: “O princípio segundo o qual os homens nascem livres e iguais já está presente no direito romano; agora deve estar presente também na realidade”[9]. Em contrapartida, vemos na conclusão do artigo do líder comunista chinês dedicado à luta dos afro-americanos pela emancipação: “O cruel sistema colonialista-imperialista se desenvolveu com a escravização e com o tráfico dos negros, e certamente chegará ao fim com a completa libertação deles”[10].

Como se vê, nos textos aqui citados de Mao (assim como naqueles já conhecidos de Ho Chi Mihn), não existem nem a subestimação da libertas minor, cara a Della Volpe, nem a ilusão, comum sob diversas formas em Della Volpe e Bloch (e Bobbio), segundo a qual capitalismo e liberalismo garantiriam, de qualquer maneira, a “igualdade formal” ou até a “igualdade política”.
 
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Notas:
[1] Ernst Bloch, Kampft, nicht Krieg. Politische Schriften, 1917-1919 (Frankfurt, Suhrkamp, 1985 [1918], p. 399-400.
[2] Ver, neste volume, cap. 1, § 7.
[3] Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würde (Frankfurt, Suhrkamp, 1961, p. 157.
[4] Domenico Losurdo, Il linguaggio dell'Impero, cit., cap. 6,§ 2.
[5] Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würd, cit., p. 80.
[6] Mao Tsé-tung, On Diplomacy (Pequim, Foreign Languages Press, 1998 [1963]), p. 377.
[7] Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würde, cit., p. 7.
[8] Mao Tsé-tung, On Diplomacy, cit., p. 377.
[9] Ernst Bloch, Naturrecht und menschliche Würde, cit., p. 79.
[10] Mao Tsé-tung, On Diplomacy, cit., p. 379.
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LOSURDO, D. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. Tradução de Ana Maria Chiarini e Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 86-89.
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