por César Mortari Barreira[1]
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Introdução
Duzentos anos após o nascimento de Friedrich Engels, as discussões sobre o legado do autor ainda constituem um dos mais claros exemplos do característico campo de batalha marxista. Das questões relacionadas à crítica da economia política àquelas referentes à dialética da natureza, o valor de Engels para o marxismo não poucas vezes é ceifado em duas alternativas: ou ele aparece como um verdadeiro detrator, como se suas reflexões constituíssem uma degradação do desenvolvimento científico alcançado por Marx; ou ele é apreciado como o cofundador do socialismo moderno, tendo não apenas construído sua obra em perfeita harmonia com seu fiel amigo, mas até mesmo desenvolvido o campo de reflexão deste.
Por isso mesmo, não chega a ser surpreendente a análise feita por Christopher Arthur acerca do legado engelsiano cem anos após seu falecimento. Naquele momento, já era particularmente claro que a variedade temática das contendas sequer encobria a rotineira interpretação de que Marx seria “o bom moço”, restando a Engels o papel de “vilão” (ARTHUR, 1996, p. xii). Essa constatação levanta a suspeita de que a recorrência da “controvérsia Engels”[2] (BLACKLEDGE, 2019, p. 6) possa estar associada à existência de uma motivação ideológica. Esta, por sua vez, seria a responsável por alimentar “sentimentos mistos” que invertem argumentos científicos em insultos pessoais. Nesse sentido, Kaan Kangal destaca uma estratégia argumentativa bastante arriscada, em que as interpretações atuais sobre Engels são projetadas a partir de um texto passado, estabelecendo uma forte distinção entre as intenções do autor, seu texto e suas leituras subsequentes (KANGAL, 2020, p. 3).
É curioso notar que esse modus operandi esteja bastante distante do esforço filológico que caracteriza a “nova leitura de Marx”[3], notadamente a partir da MEGA2. Nesta, o estudo minucioso tanto dos manuscritos marxianos como de sua correspondência compõe um mosaico cada vez mais vasto que aponta não só para a compreensão da obra de Marx “como um processo atribulado de avanços e estagnação na compreensão /.../, de tomar partido e recuar” (VOLLGRAF, 2018, p. 66), mas sobretudo para as chamadas “ambivalências de Marx”[4] (HEINRICH, 2017, p. 198). Não seria possível, portanto, compreender a negação de Engels como negação da negação de Marx enquanto centro de certeza para o marxismo?
Esse tipo de questionamento está relacionado à sugestiva “nova leitura de Engels”[5] e serve como estímulo ao presente artigo. Após apresentar as raízes e desdobramentos da “leitura histórica” de O capital, exporei a influente contraposição entre o “lógico” (Marx) e o “histórico” (Engels), formulada por Backhaus a partir da análise do conceito engelsiano de “produção simples de mercadorias”, destacando os deslocamentos que a posição Engels sofre nesse processo. Logo após, demonstrarei como a confusão lógico-histórica pode ser encontrada no próprio Marx. Minha hipótese é que o reconhecimento desses déficits comuns atesta tanto a infertilidade da distinção lógico/histórico como a necessidade de incorporar a problemática dos níveis de abstração como requisito para a construção de uma teoria marxista da sociedade.
I. Engels contra Marx: apontamentos sobre a “leitura histórica”
Já é comum na literatura marxista observar uma série de comentários a respeito da “leitura historicista de Marx” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013, p. 46). De modo geral, a narrativa de que o Livro I de O capital seria um “trabalho essencialmente histórico” (KAUTSKY, 1887, p. IX) decorre de uma interpretação bastante específica do sentido da crítica da economia política, notadamente da Seção I do Livro I. É a partir de uma resenha de Engels ao livro Para à crítica da economia política (1859) que a crítica marxiana passa a ser interpretada a partir do “método lógico-histórico”, isto é, como uma apresentação do processo de desenvolvimento histórico do capitalismo.
Nesse texto, Engels inicialmente salienta que o método dialético utilizado por Marx permitiria “fazer a crítica da economia de duas maneiras: a histórica e a lógica” (MEGA, II. 2, p. 252). No entanto, uma vez que o desenvolvimento histórico frequentemente passa por “saltos e ziguezagues”, então seu tratamento lógico pareceria ser a única alternativa. Ainda assim, Engels sustenta que “isto [a abordagem lógica – CMB], no entanto, não é na verdade nada mais que o [método – CMB] histórico, apenas despojado da forma histórica e das irritantes contingências”, de tal modo que “lá onde começa essa história deve começar também o processo de reflexão” (MEGA, II. 2, p. 253 – destaque meu). Além disso, Engels compreende que o desenvolvimento conceitual nada mais seria do que “a imagem refletida, de forma abstrata e teoricamente consequente do desenvolvimento histórico”. Assim, “neste método, partimos da primeira e mais simples relação que temos historicamente, factualmente; aqui, portanto, da primeira relação econômica que encontramos. Depois, procedemos à sua análise (MEGA, II. 2, p. 253 – destaque meu).
O mesmo tipo de entendimento aparece em Lei do valor e taxa de lucro (1895). Mais do que apenas reafirmar essa abordagem histórica, nesse escrito Engels faz uma interpretação da teoria marxiana do valor que será particularmente influente nas análises marxistas do século XX. Em um primeiro momento – ao comentar a interpretação de Werner Sombart do sistema marxiano –, Engels parece não apresentar nada particularmente novo. Ele resume os pontos principais da compreensão da teoria do valor, destacando que “o valor das mercadorias é a forma histórica específica em que se impõe, de maneira determinante, a força produtiva do trabalho, a qual, em último caso, rege todos os processos econômicos” (MEGA, II. 14, p. 328).
Em que pese salientar que “não se pode dizer que esteja incorreta essa concepção da importância da lei do valor para a forma de produção capitalista”, Engels destaca: “porém, parece-me que sua formulação é demasiadamente ampla, suscetível de uma formulação mais restrita, mais precisa” (MEGA, II. 14, p. 328 – destaque meu). Por isso, logo após a lei do valor é apresentada “em maiores detalhes”. Engels enfatizará que a produção de mercadorias se desenvolveu a partir da determinação do valor pelo tempo de trabalho, algo que inclui “múltiplas relações em que se afirmam os diferentes aspectos da lei do valor, tal como expostos na seção I do Livro I de O capital” (MEGA, II. 14, p. 332). Consequentemente, são as condições presentes nessas múltiplas relações que afetam a forma-valor. E Engels de fato destaca que essas condições parecem naturais, de tal modo que elas “se impõem sem que os participantes tomem consciência delas e só podem ser abstraídas da prática cotidiana por meio de uma longa investigação teórica” (MEGA, II, 14, p. 332).
No entanto, um acontecimento histórico – “o progresso mais significativo e decisivo” – é apresentado como o principal responsável por alterar substancialmente as referidas condições, qual seja “a transição para o dinheiro metálico” (MEGA, II. 14, p. 332). Este seria o responsável por fazer com que a determinação do valor pelo tempo de trabalho não mais aparecesse de forma visível na superfície da troca de mercadorias. Esta demarcação histórica separa dois períodos, aquele anterior ao dinheiro metálico, denominado por Engels “produção simples de mercadorias” [einfache Warenproduktion] ou “produção mercantil”, e o período capitalista propriamente dito, atual, de tal modo que a Seção I do Livro I de O capital e sua análise da forma-valor pertenceriam tão somente ao primeiro período[6]. E é exatamente isso que Engels sustenta no Prefácio ao Livro III, ao dizer que, no início de sua crítica da economia política, Marx “toma como ponto de partida a produção simples de mercadorias como seu pressuposto histórico para, então, avançar desde essa base até o capital” (MEGA, II. 15, p. 16 – destaque meu). Vale ressaltar a questão acerca da validade da lei do valor nas palavras do próprio Engels:
[A] lei marxiana do valor tem validade geral, desde que as leis econômicas valham para todo o período da produção simples de mercadorias, portanto, até o tempo em que esta experimenta uma modificação por meio da introdução da forma de produção capitalista /.../. Assim, a lei marxiana do valor tem validade econômica geral para um período que vai desde os primórdios da troca que transforma os produtos em mercadorias até o século XV de nossa era. No entanto, a troca de mercadorias tem origem numa época anterior a toda a história escrita; numa época que, no Egito, remonta a pelo menos 3.500, talvez 5.000, e na Babilônia, a 4.000, talvez 6.000 anos antes de nossa era; portanto, a lei do valor vigorou por um período de cinco a sete milênios (MEGA, II. 14, p. 333 – destaque meu).
A influência dessa interpretação foi gigantesca[7] no desenvolvimento das correntes marxistas. Note-se, por exemplo, a própria compreensão de W. I. Lênin a respeito da obra marxiana. Se em As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo (1913) é dito que “Marx traçou o desenvolvimento do capitalismo desde os primeiros germes da economia mercantil /.../ até às suas formas superiores, até à grande produção” (LW, 19, p. 07), no texto Karl Marx (1915) a principal obra de Marx é vista como um estudo que apresenta o modo de produção capitalista “em sua emergência, desenvolvimento e decadência” (LW, 21, p. 48).
Aqui sobressai uma compreensão empírica das categorias da crítica da economia política. Desse modo, a forma-valor teria como objeto “a origem da forma-dinheiro do valor, o estudo do processo histórico do desenvolvimento da troca, dos atos de troca particulares e fortuitos /.../ até a forma geral do valor” (LW, 21, p. 49 – destaque no original). Na mesma linha encontra-se Ernest Mandel, para quem, sem a produção simples de mercadorias, nenhum capitalismo poderia começar a existir, razão pela qual “O capital, os Grundrisse e outros textos econômicos básicos de Karl Marx incluem muitas análises da produção simples de mercadoria” (MANDEL, 1976, p. 14 – destaque meu)[8].
No mesmo contexto, são igualmente sintomáticas as palavras de Ronald Meek. Adepto da leitura histórica do valor, ele sustenta que a postulação de Marx de uma sociedade abstrata pré-capitalista baseada no que “ele chamou de produção ‘simples’ de mercadorias não era essencialmente diferente da postulação de Adam Smith sobre uma sociedade ‘precoce e rude’ habitada por caçadores de veados e castores” (MEEK, 1973, p. 303 – destaque meu)[9]. De todo modo, “na produção simples de mercadorias a lei do valor operava de modo a tornar as relações de troca equivalentes às taxas de trabalho incorporadas” (MEEK, 1973, p. 156).
É verdade que não deixam de existir diferenças entre esses autores, aqui brevemente retratados. Se em Engels a lei do valor existiu em uma etapa anterior ao capitalismo, no período da “produção simples de mercadorias”’ ou “produção mercantil”, em Meek ela é vista como um primeiro “modelo geral”, uma “primeira aproximação” que seria especificada e aprofundada gradativamente (MEEK, 1973, p. 180). Ainda assim, o interesse por trás dessa concisa retomada da interpretação de Engels acerca do objeto da Seção I do Livro I é destacar de que modo ela pavimenta o caminho para as análises que compreendem a crítica da economia política como a análise da gênese histórica do capitalismo[10].
Como se sabe, Marx diz, já na “Introdução” de 1857, que “seria, além de impossível, falso ordenar as categorias econômicas na sucessão em que foram historicamente determinantes”. Consequentemente, não apenas sua ordem seria “determinada pela relação que elas mantêm entre si, na sociedade burguesa moderna”, como isso seria o “o inverso do que parece ser a sua ordem natural ou a correspondente sucessão do desenvolvimento histórico” (MEGA, II. 1.1, p. 42). Daí a assertiva – em O capital – de que a lei do valor “só se desenvolve livremente com base na produção capitalista” (MEGA, II. 6, p. 499 – destaque meu).
Polêmicas à parte, as diferenças entre Marx e Engels não devem ser subestimadas, algo que pode ser observado pela comparação entre o manuscrito do Livro III (publicado pela MEGA2 em 1992) e o Livro III tal como editado por Engels (1894). Marx, por exemplo, não deixa dúvidas de que, “no caso das categorias mais simples do modo de produção capitalista, da mercadoria e dinheiro, nós já salientamos o caráter mistificador” (MEGA, II. 4.2, pp. 848-9 – destaque meu). No entanto, em seu processo de edição, Engels altera o sentido da frase ao acrescentar e demarcar a análise da mercadoria e do dinheiro à produção mercantil, isto é, à “produção simples de mercadorias”: “no caso das categorias mais simples do modo de produção capitalista, e mesmo da produção mercantil, ao examinar a mercadoria e o dinheiro, nós já salientamos o caráter mistificador” (MEW, 25, p. 835 – destaque meu)[11].
Note-se que, a partir dessa linha de raciocínio, mercadorias e dinheiro já não são mais as categorias mais simples do modo de produção capitalista, mas da produção mercantil. Como destaca Brentel, Engels entende a lei do valor da referida “produção simples de mercadorias” no sentido de “um comércio de permuta realmente pré-monetário, em que os atos de troca são mais ou menos diretamente orientados pela quantidade de trabalho” (BRENTEL, 1989, p. 144). Por isso mesmo, não é mera casualidade que, ao deslocar a forma-valor para o período pré-capitalista, esse tipo de leitura apareça como o principal adversário de Backhaus em sua tentativa de reconstrução da crítica da economia política.
Ainda assim, o “historicismo” de Engels não constitui a única fonte que alimenta as reflexões do aluno de Adorno. Diante das exposições mais ou menos fragmentárias de Marx e das variações na exposição da forma-valor[12], Backhaus não hesita dizer: “resta, portanto, um desideratum urgente da pesquisa marxista em reconstruir por inteiro a teoria do valor” (BACKHAUS, 1997, p. 42 – destaque meu). Este é o solo em que a distinção entre a “leitura lógica” e a “leitura histórica” se enraizará.
II. Marx contra Marx: o canto do cisne da reconstrução categorial
Em se tratando dos debates que ocorreram em solo alemão na década de 1970, a assim chamada “reconstrução da crítica da economia política” possui um sentido bastante preciso. Trata-se do pressuposto de que entre os diversos textos de Marx existiria um discurso unitário e correto que, por sua vez, permitiria uma reconstrução apta a tanto afastar as interpretações equivocadas da teoria marxiana como reverter seu processo de popularização (HEINRICH, 2017, p. 16). Essa hipótese tem como corolário a expectativa de que O capital seria a “obra final”, isto é, como se os manuscritos que compõem o projeto da crítica da economia política seguissem uma linha qualitativa ascendente entre os textos marxianos que culminasse na melhor e definitiva versão.
De modo geral, a principal referência dessa notória e recorrente expectativa remete aos trabalhos de Backhaus, notadamente em Dialética da forma-valor (1997), livro que reúne artigos que apresentam e desenvolvem o projeto de pesquisa do autor[13]. Como já salientado, o principal adversário da “leitura lógica” era a leitura historicista da crítica da economia política efetuada por Engels, principalmente no que diz respeito à tese da “produção simples de mercadorias”. Por tal razão, o importante aqui não é expor uma análise detalhada da obra de Backhaus, mas enfatizar como a mudança de postura desse autor em relação aos estudos históricos – e, consequentemente, uma reavaliação da contribuição de Engels – abre portas para a compreensão dos diversos níveis de abstração que compõem o estudo da reprodução social capitalista e seus respectivos limites, uma abertura que, como será destacado, não se deixa entrincheirar pela oposição lógico ou histórico.
Considere-se, primeiramente, o texto Para a dialética da forma-valor (1969). Nele Backhaus faz uma espécie de apresentação de seu programa de pesquisa, tendo como ponto de partida uma análise da recepção da crítica da economia política em diversos autores. Nesse momento é salientando como a teoria marxiana do valor é geralmente distorcida na mera “enumeração de hipóteses sociológicas e econômicas” (BACKHAUS, 1997, p. 41), algo intimamente associado aos déficits de compreensão da forma-valor no marxismo então hegemônico. No entanto,
[A] recepção inadequada da análise da forma de valor não pode ser atribuída apenas a uma certa cegueira problemática dos intérpretes. A inadequação de suas representações provavelmente só pode ser entendida partindo da suposição de que Marx não deixou para trás uma versão completa de sua teoria do valor-trabalho (BACKHAUS, 1997, p. 42).
Backhaus refere-se à existência das já mencionadas diferenças na exposição da forma-valor, o que traria a “necessidade urgente” de reconstruir totalmente a teoria do valor (BACKHAUS, 1997, p. 42). Com isso ele esperava destrinchar a contribuição da análise da forma-valor para a teoria marxiana da sociedade a partir de três aspectos: ela seria (i) a interface entre sociologia e teoria econômica para a construção de uma teoria da sociedade; (ii) a base para uma crítica da ideologia e a para a construção de uma teoria específica do dinheiro; e (iii) a premissa para se compreenderem as relações entre as relações de produção e a “superestrutura” no âmbito de uma teoria da sociedade (BACKHAUS, 1997, p. 57).
Mas é a partir da década de 1970 que Backhaus aprofunda essas questões. Entre 1974 e 1997 aparecem os famosos Materiais para a reconstrução da teoria marxiana do valor, divididos em quatro partes – primeira (1974), segunda (1975), terceira (1978) e quarta (1997). As duas primeiras possuem uma narrativa comum, qual seja, a construção de um discurso crítico tanto a Engels como ao marxismo que o sucedeu. Assim, na Primeira parte Backhaus inicia suas considerações analisando algumas críticas feitas à teoria do valor de Marx, para então salientar que a literatura marxista “não era de modo algum capaz de refutar convincentemente todas as objeções do outro lado; ela mesma não está livre de graves deficiências de interpretação” (BACKHAUS, 1997, p. 69 – destaque meu). E qual seria a razão dessa “grave deficiência”?
Segundo Backhaus, isso estava intimamente associado ao “erro fundamental” de Engels ao interpretar equivocadamente os três primeiros capítulos de O capital nos termos de uma “produção simples de mercadorias”, tal como destacado no item anterior. Consequentemente, ao seguir essa interpretação, “a teoria marxista do valor teve que bloquear a compreensão da teoria marxiana do valor” (BACKHAUS, 1997, p. 69 – destaques no original). Isso teve como consequência primária a formação de um cenário em que atuam as distintas versões da análise da forma-valor e os mais diversos erros interpretativos, de tal modo que “os estudiosos marxistas se viram incapazes de definir o significado de seus próprios conceitos básicos da teoria do valor de uma maneira universalmente vinculante” (BACKHAUS, 1997, p. 72). Desse modo, não chega a ser surpreendente que Backhaus resuma a contribuição da teoria marxista do valor ressaltando uma vez mais a diferença entre Marx e marxistas:
A teoria marxista do valor ficou presa ao terreno da teoria pré-marxiana, e sua estrutura conceitual poderia ser definida como uma versão apenas terminologicamente nova da teoria do valor-trabalho dos ricardianos de esquerda (BACKHAUS, 1997, p. 74 – destaque no original).
Esse tipo de compreensão traz uma consequência importante, qual seja, a expectativa de que “o texto de Marx é, em si mesmo, incompreensível e, na melhor das hipóteses, acessível somente à filologia especializada de Marx” (BACKHAUS, 1997, p. 70 – destaque meu). Assim, a ênfase nos erros da tradição marxista vinculada a Engels e o destaque à reconstrução filológica do núcleo da crítica da economia política denotam um pressuposto fundamental: a existência de um discurso correto e coerente no texto marxiano, como já indicado, acessível somente a especialistas.
Ora, este é justamente o principal objeto da Segunda parte, que tem início destacando como as teorias marxistas do valor possuem uma “afinidade estrutural” com as teorias subjetivas do valor. E qual seria essa afinidade? Segundo Backhaus, ambas ignoram a conexão entre forma-valor e dinheiro e, portanto, constituem “teorias pré-monetárias do valor” em que “a indiferença à teoria monetária e à forma não-dialética do desenvolvimento conceitual são basicamente apenas dois aspectos da mesma coisa” (BACKHAUS, 1997, p. 93). É a partir deste momento que Backhaus passa a enfatizar o caráter monetário da teoria marxiana do valor, no preciso sentido de que a crítica da economia política deveria ser entendida como uma crítica a todas as abordagens pré- monetárias (BACKHAUS, 1997, p. 94). Daí a retomada do argumento de que o “núcleo racional” da teoria marxista do valor seria uma “variante determinada da teoria do valor dos ricardianos de esquerda” (BACKHAUS, 1997, p. 94).
Backhaus procura justificar esse argumento salientando que a “função do valor” teria sido reduzida à mera regulação da relação de troca entre mercadorias. Consequentemente, “para a apresentação do conceito de valor, parece ser completamente irrelevante se os valores são expressos como preços monetários e se a troca é mediada pelo dinheiro ou não” (BACKHAUS, 1997, p. 95). Assim, ainda que os adeptos da teoria da “produção simples de mercadorias” façam uso de conceitos dialéticos, Backhaus não vê nisso mais do que uma mera “construção verbalmente dialética” (BACKHAUS, 1997, p. 97) que substitui a derivação conceitual do dinheiro por uma hipótese histórica acerca de seu surgimento.
Daí sua insistência na tese de que o material histórico só poderia ser compreendido e ordenado pela lógica. Mas não só, já que o autor chega a dizer que “se as interpretações de Engels fossem seguidas, as montanhas da dialética de Marx teriam dado à luz a nada mais do que um rato” (BACKHAUS, 1997, p. 112 – destaque meu)[14]. Portanto, não chega a ser surpreendente a suspeita levantada por Backhaus de que Engels possivelmente não tenha compreendido adequadamente o sentido da exposição dialética marxiana das categorias da crítica da economia política (BACKHAUS, 1997, p. 113).
No entanto, o que realmente chama a atenção é a mudança de postura observada na Terceira parte de suas reflexões acerca da alegada “necessidade urgente” de reconstrução da teoria marxiana do valor. Aqui Backhaus informa ao leitor que tomou conhecimento de algumas passagens de Marx e Engels que não se enquadravam nem lógica, nem historicamente, o que trouxe uma vez mais a problemática da primazia de uma ou outra abordagem (BACKHAUS, 1997, p. 131). Diferentemente de momentos anteriores, agora Backhaus admite que existe “uma incerteza da parte de Marx sobre a origem e validade dos termos que ele usa”. Consequentemente, seria necessário “rever fundamentalmente o conceito de ‘reconstrução’ subjacente às duas primeiras partes dos Materiais” (BACKHAUS, 1997, p. 132 – destaque meu).
Isso significa que há uma alteração na “imputação” dos chamados erros de interpretação. Se antes Backhaus advogava pela existência de uma leitura correta da obra marxiana, algo que seria obtido pela reconstrução lógica da apresentação categorial, agora é o próprio estatuto da crítica da economia política que é questionado. Uma vez constatada uma “certa incerteza” em Marx – ou seja, a não clareza quanto ao caráter lógico ou histórico de determinadas passagens –, então os equívocos interpretativos têm origem no próprio Marx:
[À] luz das passagens anteriormente ignoradas no texto, esta interpretação “lógica” revelou-se uma simplificação injustificável do problema da “apresentação” /.../. O conteúdo teórico crítico e monetário forma apenas um componente da teoria do valor de Marx, de modo que a peculiaridade problemática dessa teoria do valor só é compreendida quando se mantém um olho no componente oposto, sua intenção “histórico-lógica”. Apenas o reconhecimento de certas ambiguidades [Zweideutigkeiten] transmite uma imagem adequada da teoria marxiana do valor (BACKHAUS, 1997, p. 133 – destaque meu).
Note-se bem: aquilo que constituía a forma de descobrimento do discurso correto e coerente de Marx aparece agora como uma “simplificação injustificável”. Mais que isso, já que Backhaus também aponta a necessidade de se reconhecerem as “ambiguidades”[15] de Marx. Ora, as consequências desse tipo de posicionamento afetam profundamente o conteúdo das Partes I e II dos Materiais, algo que não passa despercebido pelo próprio autor.
Com isso se compreende o argumento de que a interpretação lógica poderia negar a interpretação histórica, mas que esta também poderia negar aquela. Assim, o impasse entre esses dois modelos interpretativos deveria ser entendido “como uma indicação de que o problema metodologicamente tão importante da interpretação ‘lógica’ e ‘histórica’ foi resolvido de forma instável pelo próprio Marx” (BACKHAUS, 1997, p. 136 – destaque meu). Isso significa uma mudança radical de postura frente às primeiras considerações apresentadas nas páginas anteriores, o que pode ser observável pela própria advertência feita por Backhaus: se a interpretação lógica de O capital ignorasse as referidas “ambiguidades”, ela correria o risco de se tornar uma “nova ortodoxia”, um “novo dogmatismo de uma filologia marxiana” em que o texto marxiano seria considerado “sacrossanto” (BACKHAUS, 1997, p. 138).
Como se vê, o canto do cisne da tentativa de reconstrução filológica constitui um verdadeiro réquiem para a distinção entre “lógico” ou “histórico” como chave de leitura da crítica da economia política. Consequentemente, percebe-se como Engels já não é mais o “rato”, ao mesmo tempo em que Marx já não aparece como a “montanha”. Tal como destacado por Backhaus, “o próprio texto marxiano dá motivos para argumentar com Marx contra qualquer interpretação marxista e, finalmente, também com Marx contra Marx” (BACKHAUS, 1997, p. 139 – destaque meu).
Se assim for – e isto é fundamental para a problemática construída ao longo deste artigo –, então cai por terra a possibilidade de toda e qualquer reconstrução da forma-valor e sua verve anti-Engels, algo que Backhaus também admite. Primeiramente, salientando que o principal problema em Marx já não seria o da “variabilidade” e dos “erros de exposição”, mas a manifestação destes como “problemas objetivos insuficientemente resolvidos, defeitos da análise material” (BACKHAUS, 1997, p. 144). E, em segundo lugar, sustentando que Marx se viu incapaz de articular de modo suficientemente claro e distinto “sua própria descoberta por meio dos conceitos econômico-filosóficos por ele utilizados, os quais pertenciam a diferentes modelos teóricos” (BACKHAUS, 1997, p. 144).
Diante dessas novas reflexões, quais seriam as consequências desse giro compreensivo para o embate entre Marx e Engels? Se a expectativa inicial acreditava poder desvendar um discurso correto e coerente da obra marxiana a partir dessas determinações formais, seria o reconhecimento da importância da leitura histórica um aceite da historização da forma-valor? Seria correto, tal como postula Engels, considerar que “a lei do valor vigorou por um período de cinco a sete milênios” (MEGA, II, 14, p. 333 – destaque meu)?
Em hipótese alguma. A contribuição da leitura “lógica” está justamente na crítica à tese da “produção simples de mercadorias”, revelando com isso o amálgama existente entre valor, forma-valor e dinheiro no capitalismo. Mesmo Blackledge concorda com os críticos – dentre os quais se destacam, além de Backhaus, Arthur e Heinrich –, afirmando que Engels “entendeu muito mal a teoria do valor de Marx de uma forma que teve implicações teóricas e políticas profundamente deletérias para o marxismo do século XX” (BLACKLEDGE, 2019, p. 166).
Ainda assim, é indisputável a limitação e a reavaliação do projeto originário de Backhaus. Se a análise da forma-valor continua fundamental, ela perde o estatuto de centro de gravidade a partir do qual todas as questões subjacentes à crítica da economia política poderiam ser resolvidas. Por essa razão, Backhaus agora admite que o próprio Marx mescla análises lógicas e históricas. Portanto, “esses novos problemas [referentes à contribuição dos estudos históricos – CMB] estão em condição de relativizar a reconstrução ‘lógica’ da teoria do valor, transformando-a em uma interpretação” (BACKHAUS, 1997, p. 155 – destaque no original). Neste movimento – da “reconstrução” à “interpretação” –, Backhaus chega mesmo a dizer, em uma nota de rodapé particularmente importante, que suas reflexões de 1969 – quando destacava a “necessidade urgente de reconstruir por inteiro a teoria do valor” (BACKHAUS, 1997, p. 42) – nada mais seriam do que a manifestação de uma “pretensão ingênua” (BACKHAUS, 1997, p. 220, n. 32 – destaque meu).
De todo modo, diante da própria mudança de postura de Backhaus, a Quarta parte dos Materiais tenta desvendar a possível conexão entre as leituras lógicas e históricas. Aqui entra em cena um exame minucioso não só das edições de O capital, mas também dos Grundrisse e de Para a crítica da economia política. Se o “Rascunho” de 1857-8 e a primeira edição (1867) de O capital jogariam a favor de uma interpretação lógica, o prefácio do texto de 1859 e a segunda edição (1872) de O capital encampariam uma interpretação histórica. Assim, essa análise teria como condão provar que “em Marx e Engels o ‘lógico’ e o ‘histórico’ se combinam de diferentes maneiras” (BACKHAUS, 1997, p. 229). Essa “combinação”, no entanto, nada diz acerca da pergunta: como se relacionam o lógico e o histórico na exposição categorial dialética?
Backhaus não consegue encaminhar uma resposta satisfatória a essa questão, mesmo após percorrer inúmeros textos de Marx e Engels. Ele até considera a hipótese de que a história não seria uma mera “ilustração” do desenvolvimento categorial dialético, mas uma “prova” deste, para logo então descartar essa possibilidade (BACKHAUS, 1997, pp. 258-9). Não por acaso, após idas e vindas, Backhaus observa a conexão entre “lógica” e “história” como um “problema irresolúvel da construção marxiana da teoria do valor”, em que as distintas versões deixadas por Marx manifestariam sempre novas tentativas de estabelecer alguma relação lógico-histórica (BACKHAUS, 1997, p. 297 – destaque meu). Aparentemente, então, o projeto inicial de reconstruir a teoria marxiana do valor pela correta interpretação da forma-valor desemboca num beco sem saída. Tendo reconhecido a importância da análise da forma-valor para uma crítica das teorias pré-monetárias do valor, a discussão sobre a conexão entre crítica da economia política e teoria da sociedade – tão cara a Backhaus em seus primeiros escritos – parece ter seu desenvolvimento interrompido.
Ocorre que as coisas não são tão simples. De fato, Backhaus termina suas reflexões salientando como as críticas de Marx a Smith – a respeito da confusão entre desenvolvimento categorial e histórico – podem ser direcionadas ao próprio Marx, de tal modo que a construção de uma teoria social a partir deste resta profundamente prejudicada. Mas o último parágrafo da Parte IV também esboça uma saída. Diante de todas as reflexões que marcam o percurso dos Materiais para uma reconstrução da teoria marxiana do valor, notadamente a reconsideração dos estudos históricos, Backhaus agora diz: “isto implica a necessidade de uma reconstrução crítica” (BACKHAUS, 1997, p. 297 – destaque meu). Mas qual seria o sentido desta nova reconstrução?
Somente uma frase a mais é apresentada por Backhaus até o término do livro, onde se lê: “isso só pode significar que a teoria de Marx é ‘decomposta e recomposta em uma nova forma para que possa assim atingir o fim que ela mesma se pôs’” (BACKHAUS, 1997, p. 297). Assim, essa nova reconstrução crítica implicaria desmontar e refazer a crítica da economia política, não mais a partir de uma crítica imanente – tal como desenvolvida pela apresentação categorial das determinações formais do modo de produção capitalista –, mas a partir de uma aproximação à intersubjetividade como critério normativo. Isso porque o trecho citado por Backhaus – “desmontada e refeita em uma nova forma para melhor atingir o objetivo que estabeleceu para si mesma” – vem de Para a reconstrução do materialismo histórico, escrito por Jürgen Habermas[16] em 1976 (BACKHAUS, 1997, p. 298).
Ora, os impasses decorrentes da tentativa de Backhaus de reconstruir a análise da forma-valor parecem constituir uma espécie de “Cavalo de Tróia” do chamado “giro antiprodutivista da teoria social” (GONÇALVES, 2014), caracterizado sobretudo pelo retorno do idealismo. Por isso mesmo, é fundamental apontar os dois pontos principais que constituem o principal legado da reflexão iniciada pelo aluno de Adorno. O primeiro tem como base as duas primeiras partes dos Materiais, intimamente associadas à ênfase na conexão interna entre a teoria do valor e a teoria do dinheiro. Isso significa a compreensão da crítica da economia política como uma crítica das teorias pré- monetárias do valor, sejam elas marxistas ou não. O segundo ponto, por sua vez, decorre da guinada compreensiva presente nas duas últimas partes dos Materiais. Se a análise da forma-valor, apesar de permanecer fundamental, já não pode ser vista como o centro a partir do qual gira uma reconstrução da obra marxiana, isso significa que ela mesma constitui somente um nível de abstração da crítica da economia política, distinto, por exemplo, do estudo histórico de uma sociedade capitalista em particular.
Consequentemente, a possibilidade de uma saída normativa – uma abertura posta pelo próprio Backhaus, ainda que ele mesmo não a siga – está longe de ser uma necessidade. Pelo contrário, não se trata aqui de desmontar a crítica da economia política em virtude do “problema insolúvel” acerca da relação entre o lógico e o histórico, mas de delimitar seus respectivos âmbitos de problematização e sua conexão em uma ciência integrada da reprodução social capitalista. Nesse sentido, a análise da forma-valor e seu desenvolvimento conceitual até as formas mais concretas podem ser compreendidos como manifestação da crítica da economia política em sua “média ideal” (MEGA, II. 4.2, p. 853), tal como colocado por Marx no Livro III[17].
Mas não só. Como o próprio Marx destacava já nos Grundrisse, “o nosso método indica os pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida” (MEGA, II. 1.2, p. 369). No entanto, não se trata apenas de uma indicação, já que no Urtext Marx faz uma advertência decisiva, e ainda hoje pouco reconhecida: “a forma dialética de apresentação só é correta se conhece seus limites” (MEGA, II. 2, p. 91 – destaque meu). Mais do que uma separação entre leituras – lógica ou histórica –, aqui se manifesta uma distinção referente aos distintos níveis de abstração que atravessam uma teoria crítica da sociabilização capitalista. No entanto, isso não significa que não existam dificuldades “históricas” no próprio Marx, notadamente no âmbito de sua análise do dinheiro, tema que, como destacado, orientou grande parte das críticas destinadas a Engels.
III. Engels com Marx: aprofundando a temática dos níveis de abstração
Uma dificuldade considerável atravessa O capital, qual seja, a fundamentação do sistema monetário em uma mercadoria que seria dinheiro [Geldware][18]: “a dificuldade não está em compreender o que é mercadoria, mas em descobrir como, por que e por quais meios a mercadoria é dinheiro” (MEGA, II. 6, p. 120). Diante da queda de Bretton Woods, que pôs fim ao ouro como lastro do dólar, isto é, fazendo com que o sistema monetário não dependesse mais de uma mercadoria, o que fazer com a premissa acima destacada? Seria possível encontrar outra fundamentação para o sistema monetário que não seja pressupondo historicamente uma mercadoria- dinheiro como base de seu desenvolvimento conceitual?
Aqui é interessante notar como no Urtext encontra-se outra delimitação acerca da fundamentação do dinheiro:
O processo de produção burguesa apreende primeiro a circulação do metal como um órgão tradicional acabado, que se transforma gradualmente, mas que retém sempre a sua construção básica. A questão, portanto, do porquê o ouro e a prata servem como material do dinheiro ao invés de outras mercadorias, vai além dos limites do sistema burguês. (MEGA, II. 2, p. 39)
Diferentemente do argumento sustentado em sua principal obra, nesse momento Marx explicitamente se move pela narrativa dos “limites” do sistema burguês. Ora, não parece ser trivial que o dinheiro deva ser uma mercadoria X, e não Y, algo que Marx procurou destrinchar ao longo dos anos. Ainda que a partir da segunda edição de O capital se encontre a referida identificação entre dinheiro e mercadoria, é importante notar um registro distinto dessa questão tanto em Para a crítica da economia política como na primeira edição de O capital. A diferença na abordagem está relacionada a uma determinação formal importante para a teoria monetária do valor, e posteriormente abandonada por Marx: a sugestiva “forma genérica” [Gattungsform].
Em se tratando do texto de 1859, em particular no que se refere à análise do dinheiro, Marx sustenta:
Contrariamente às mercadorias que apenas representam a existência independente do valor de troca, o trabalho social geral, a riqueza abstrata, o ouro é a existência material da riqueza abstrata /.../. O ouro é a riqueza universal como indivíduo. (MEGA, II. 2, p. 188 – destaque no original)
Se o “ouro é a riqueza universal como indivíduo”, então o dinheiro não é apenas um termo genérico abstrato, mas também – isto é, ao mesmo tempo – a materialização da riqueza abstrata, um elemento concreto que está no mesmo plano das mercadorias individuais. Trata-se, assim, de um universal que efetivamente também é individual, algo que Marx havia captado na primeira edição alemã de O capital – em uma passagem igualmente excluída das edições posteriores – com a sugestiva analogia:
Na forma III, que é a segunda forma invertida e que está, portanto, contida nela, a tela aparece, pelo contrário, como a forma genérica [Gattungsform] do equivalente para todas as outras mercadorias. É como se ao lado e além dos leões, tigres, lebres e todos os animais efetivamente reais, que agrupados constituem as diferentes raças, espécies, subespécies, famílias etc. do reino animal, existisse também o animal, a encarnação individual de todo o reino animal. Tal indivíduo que compreende em si mesmo todas as espécies efetivamente existentes da mesma coisa é um universal, como o animal, Deus e assim por diante. (MEGA, II. 5, p. 37 – destaques no original)[19]
Essa “forma genérica” é sem dúvida uma abstração real, cujo sentido permite uma melhor compreensão da problemática assertiva de que o dinheiro deve ser uma mercadoria. Note-se que esse “animal” não necessita ser, por exemplo, o leão, ou o tigre. O que está em jogo não é a identidade entre o gênero e as espécies, mas que aquele exista ao lado destes.
Ou seja, há a possibilidade de que ambos coincidam, algo que Marx tomava como sendo necessário. Tal como destacado por Heinrich,
Marx inicia a análise da forma de valor com o fato de que o valor de uma mercadoria é expresso no valor de outra mercadoria. O que ele demonstra não é que seja necessário que uma segunda mercadoria sirva como expressão de valor para a primeira, mas que esta expressão de valor é incompleta e deficiente, se estiver ligada a uma única mercadoria aleatória. Por meio da expressão de valor de uma mercadoria em outra mercadoria, Marx demonstra quais requisitos uma forma de valor deve atender para expressar adequadamente seu valor. No entanto, que o portador desta forma de valor seja ele próprio uma mercadoria não foi evidenciado, mas assumido desde o início. Embora a análise da forma de valor forneça as determinações formais do equivalente geral, ela não fornece um argumento sobre se o equivalente geral deve ou não ser uma mercadoria. (HEINRICH, 2017, p. 233 – destaques no original)
No entanto, no âmbito da crítica da economia política, isto é, tendo em vista seu nível de abstração na referida “média ideal”, a posição dessa identidade ultrapassa os já mencionados limites da apresentação dialética. Mesmo nos Grundrisse, ainda que sem se referir à “forma genérica”, Marx também salienta:
A mercadoria deve ser trocada por uma terceira coisa que, por sua vez, não seja ela mesma uma mercadoria particular, mas o símbolo da mercadoria como mercadoria, o próprio valor de troca da mercadoria; portanto, que represente, digamos, o tempo de trabalho enquanto tal, digamos, um pedaço de papel ou de couro que represente uma parte alíquota de tempo de trabalho. (MEGA, II. 1.1, p. 79 – destaques no original)
Não por acaso, a ideia de que o dinheiro existe “ao lado” das mercadorias já era aqui percebida. Por isso é dito que o valor de troca se apresenta no dinheiro não só como “mercadoria universal ao lado de todas as mercadorias particulares”, mas “simultaneamente /.../ como mercadoria particular (dado que possui uma existência particular) ao lado de todas as outras mercadorias”. Consequentemente, “aqui não se fala ainda, de modo algum, do dinheiro fixado na substância de um determinado produto” (MEGA, II. 1.1, p. 84 – destaques no original).
Por mais que nos Grundrisse essa percepção do dinheiro não seja desenvolvida a partir da análise da forma-valor, é importante atentar que
qualquer dinheiro (quer se trate de mercadorias com valor intrínseco ou não) é apenas um representante do “valor como tal” e, portanto, um “selo de valor”. Apenas neste sentido geral é que a categoria de dinheiro é o resultado do exame do processo de troca (HEINRICH, 2017, p. 236 – destaque no original).
Note-se que a ideia de representação está intimamente associada à análise formal. É ela que desenvolve a determinação decisiva do dinheiro, qual seja, a forma de equivalente geral. Por isso, aqui se percebe como a abordagem marxiana se distancia tanto do nominalismo como do metalismo. Nestes, a controvérsia gira em torno da pergunta “o que transforma o dinheiro em dinheiro, uma convenção social ou um valor intrínseco da coisa?”. Marx, por sua vez, aponta a necessidade de uma expressão independente de valor, uma manifestação que é tanto exteriorização quanto fetichização.
Naturalmente, o desenvolvimento histórico subjacente a essa necessidade “materializa” de distintos modos a referida expressão independente de valor. Assim, é importante atentar para a delimitação desse objeto no estudo do dinheiro tal como ele se apresenta na circulação simples de mercadorias, essa “esfera abstrata” (MEGA, II. 2, p. 68) da sociedade burguesa. No entanto, aqui a pergunta acerca da necessidade do dinheiro está localizada em um nível distinto de apresentação quando comparada à pergunta pela natureza do objeto que figura como dinheiro (HEINRICH, 2017, p. 237).
Como se vê, nesta ocasião entra em cena uma vez mais a importante ressalva de que “a forma dialética de apresentação só é correta se conhecer seus limites” (MEGA, II. 2, p. 91 – destaque meu), ainda que o próprio Marx os ultrapasse em determinados momentos. Por isso, é a desatenção a essas fronteiras que faz com que o desenvolvimento categorial do dinheiro fique por vezes refém da determinação histórica, tal como manifestado na análise do “dinheiro mundial”:
Ao deixar a esfera da circulação interna, o dinheiro se despe de suas formas locais de padrão de medida dos preços, de moeda, de moeda simbólica e de símbolo de valor, e retorna à sua forma original de barra de metal precioso. (MEGA, II. 6, p. 162 – destaque meu)
Mas é justamente o reconhecimento de que também em Marx o “lógico” é atravessado pelo “histórico” que permite questionar uma vez mais sua contraposição a Engels. É certo que existem diferenças fundamentais. Diante da sequência mercadoria-dinheiro-capital exposta no Livro I[20], pode-se dizer que Engels a aborda em termos históricos e, assim, mescla a dialética conceitual com a dialética histórica (ARTHUR, 1996, p. 183). Isso, no entanto, omite um texto sumariamente ignorado pela literatura, qual seja, a “sinopse” escrita por Engels em 1868, em que a necessidade do dinheiro é explicitamente desdobrada da análise da mercadoria, sem nenhum argumento histórico (MEW, 16, p. 247).
Marx, por sua vez, inicialmente a compreende como manifestação da circulação simples de mercadorias, isto é, como forma de aparecimento da totalidade da sociabilização capitalista, “esfera abstrata do processo global de produção burguês” (MEGA, II. 2, p. 68)[21]. Mas aqui também não se pode esquecer que o próprio Marx colocou a questão do valor igualmente em termos históricos no manuscrito do Livro III: “é bastante apropriado /.../ considerar os valores das mercadorias não só do ponto de vista teórico, mas também do histórico, como o prius dos preços de produção” (MEGA, II. 4.2, p. 252 – destaque no original).
Essas referências reforçam a mencionada suspeita de que a negação de Engels serve como instrumento de bloqueio à problematização de que que a doutrina de Marx seria “omnipotente porque ela é verdadeira. É completa e harmoniosa, dando aos homens uma visão integral do mundo” (LW, 19, pp. 3- 4 – destaque meu), tal como interpretado por Lênin em As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo (1913). Na verdade, há entre Marx e Engels mais aproximações – ainda que estas demonstrem problemas comuns – do que franca contraposição, tal como sugerido nas reflexões iniciais de Backhaus.
Por isso mesmo, é particularmente importante a sistematização apresentada por Kozo Uno na década de 1960, ao apresentar três níveis de apreensão da sociedade capitalista: (i) a teoria pura [genriron]; (ii) a teoria dos estágios históricos capitalistas [dankaïron]; e (iii) a análise empírica da atual situação da economia política em um estado qualquer [genjô-bunseki] (UNO, 2016, p. 236), sendo que “a lógica interna do capitalismo só pode ser rigorosamente compreendida pela teoria pura econômica, que por sua vez é distinta da teoria das etapas do desenvolvimento capitalista” (UNO, 2016, pp.31-2)[22].
A partir dessa perspectiva, a reflexão de Engels acerca da transformação histórica pode ser compreendida como a tentativa de uma “teoria da história econômica” (HOLLANDER, 2011, p. 111), algo que se situa no nível do dankaïron. Isso fica particularmente claro quando se atenta para a carta que Engels enviou a Werner Sombart (11 de março de 1895). Após salientar a importância da análise de Marx sobre as leis econômicas e a equalização da taxa de lucro, Engels pergunta: “mas como esse processo de equalização realmente se deu? Esse é um ponto muito interessante sobre o qual o próprio Marx tem pouco a dizer” (MEW, 39, p. 428). E, logo após, pondera:
Todo o modo de pensar de Marx não é tanto uma doutrina, mas um método. Ele fornece, não tanto dogmas prontos, mas auxílios para uma investigação mais profunda e o método para tal investigação. Aqui, então, está um trabalho a ser feito que o próprio Marx não tentou em seu primeiro rascunho. /.../ Uma exposição efetivamente histórica deste processo – que, embora reconhecidamente exigindo uma grande quantidade de pesquisa, oferece a perspectiva de resultados correspondentemente gratificantes – seria um complemento muito valioso para o Capital. (MEW, 39, pp. 428-9 – destaque no original)[23]
Como se vê, o “historicismo” de Engels não é uma substituição ou inversão de O capital, mas um complemento que pode ter a crítica da economia política em sua “média ideal” como seu pressuposto. Essa possibilidade, no entanto, depende cada vez mais de pesquisas que consigam amalgamar o ímpeto filológico da “nova leitura de Marx” à “nova leitura de Engels”.
Considerações finais
Em uma carta a Maxim Maximowitsch Kowalewski (abril de 1879), Marx não deixou de destacar a importância de “distinguir o que um determinado autor realmente diz do que ele acredita dizer” (MEW, 34, p. 506). Apesar da seletividade de grande parte da literatura marxista na aplicação dessa regra, as recentes discussões acerca das ambivalências do aparato conceitual marxiano prometem bons frutos. Ainda que “poucos marxistas estejam prontos para aceitar a possibilidade de tais contradições nos escritos econômicos maduros de Marx” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013, p. 35), esta é uma abertura particularmente importante. No presente artigo, procurei demonstrar como ela pode ser produtivamente movimentada contra as narrativas que sustentam a existência de uma contraposição entre Marx e Engels.
Após inicialmente apresentar uma retomada dos argumentos que caracterizam o “historicismo” de Engels – notadamente, a resenha de Para a crítica da economia política e o texto Lei do valor e taxa de lucro –, destaquei tanto a influência que o conceito de “produção simples de mercadorias” teve enquanto chave de leitura da crítica da economia política, como sua cristalização enquanto “leitura histórica” de O capital, principal adversária da “leitura lógica”. Logo depois, recuperei a argumentação desenvolvida por Backhaus, principalmente no que se refere à alegada “necessidade urgente” de reconstrução da teoria marxiana do valor. Tendo apresentado os argumentos desenvolvidos em Materiais para a reconstrução da teoria marxiana do valor, enfatizei a mudança de postura no tocante à contribuição de Engels para a crítica da economia política. Nesse contexto, se a análise da forma-valor já não podia ser vista como o eixo a partir do qual giraria a reconstrução da obra marxiana, isso significou que ela mesma estava restrita a um nível de abstração específico – a análise na “média ideal” ou genriron –, não se confundindo com o estudo histórico da sociedade capitalista – situado no nível do dankaïron.
Esses argumentos serviram como base para aprofundar os desafios da distinção lógico/histórico no próprio Marx. Após discutir um dos aspectos problemáticos na exposição do dinheiro no Livro I, demonstrei como a “presença” historicista de Engels no próprio Marx aponta para a necessidade de incorporação dos estudos dos níveis de abstração que atravessam a sociabilização capitalista como objeto de pesquisa. Nesse sentido, a tão criticada “transformação histórica” engelsiana aparece como um desenvolvimento analítico que não apenas difere da “pureza” subjacente à dialética categorial como a pressupõe. Assim, o reconhecimento dos “limites” da “média ideal”, de um lado, e a construção de um amálgama conceitual que vincule os níveis macro, meso e micro, do outro, ainda constituem um dos principais desafios para a construção de uma teoria marxista da sociedade.
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Notas
[1] Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Coordenador Científico do Instituto Norberto Bobbio. E-mail: csarmbarreira@gmail.com.
[2] Segundo Stephen Rigby, o argumento de que Engels teria distorcido as ideias de Marx já estava presente no final do século XIX (RIGBY, 1992, p. 4). Blackledge apresenta um resumo detalhado dos embates logo na introdução de seu Friedrich Engels and modern social and political theory (BLACKLEDGE, 2019, pp. 1-20).
[3] A nova leitura de Marx [neue Marx-Lektüre] tem início na década de 1960, mais precisamente nos anos de 1964 e 1965, no âmbito da Escola de Frankfurt, a partir do desenvolvimento de um grupo de trabalho de alunos de Adorno. Com fulcro nos trabalhos de Hans Georg Backhaus, Helmut Reichelt, Helmut Brentel e, mais recentemente, Michael Heinrich e Nadja Rakowitz, entre outros, essa leitura tem como premissa a retomada da forma-valor como eixo a partir do qual se movimentam as análises da sociedade capitalista. Apesar das profundas divergências sobre o sentido das categorias marxianas, a defesa de uma teoria monetária do valor e a ênfase no fetichismo do capital – e não só da mercadoria – constituem duas de suas principais contribuições. Para uma visão geral das inúmeras leituras de Marx que passam a ser produzidas a partir da década de 1960, ver o livro Marx global (HOFF, 2009, pp. 78-195).
[4] Note-se que essa ambivalência não é atribuída a um erro ou a uma falta de precisão conceitual (BRENTEL, 1989, p. 281). O argumento aqui é sensivelmente mais profundo. As ambivalências são compreendidas como uma consequência de toda revolução científica que tenta “criar uma nova disciplina teórica com base na crítica de um sistema de pensamento estabelecido” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013, p. 46). Por isso Heinrich argumenta que “o seu próprio desenvolvimento categorial [de Marx – CMB] permanece ambivalente em pontos decisivos” (HEINRICH, 2017, p. 17 – destaque no original).
[5] O termo [neue Engels-Lektüre] é utilizado por Kangal logo na introdução de seu Friedrich Engels and the dialectics of Nature, em clara referência à “nova leitura de Marx” (KANGAL, 2020, p. 1).
[6] Após a publicação do Livro III, o já falecido Marx era alvo da crítica de que a lei do valor exposta no Livro I teria sido abandonada a favor das determinações dos preços de produção. Daí o argumento de Conrad Schmidt de que o valor seria apenas uma “ficção”, uma mera “hipótese científica”. A saída encontrada por Engels para defender Marx foi justamente salientar que toda a temática não era apenas lógica, mas histórica. O “dinheiro metálico” seria o responsável tanto por invisibilizar a teoria do valor como por trazer à luz os preços de produção como critério de avaliação.
[7] Trata-se daquilo que Ingo Elbe denomina Engelsianismo: “os escritos de Engels – ainda que conceitos como ‘marxismo’ ou ‘materialismo dialético’ não se encontrassem neles – forneceram para gerações inteiras de leitores, marxistas e antimarxistas, o modelo interpretativo através do qual a obra de Marx foi apreendida” (ELBE, 2010, p. 14).
[8] Note-se, no entanto, que nenhuma referência textual é dada ao leitor. Como destacado mais adiante, isso ocorre porque a categoria “produção simples de mercadoria” simplesmente nunca foi utilizada por Marx.
[9] Salientando quão complexa era uma análise desse tipo para fins de compreensão da sociedade capitalista, Meek chega mesmo a classificar esse estudo como uma “mitodologia” [mythodology] (MEEK, 1973, p. 304).
[10] O exemplo mais sintomático possivelmente está em Wolfgang Fritz Haug. Em sua “décima preleção” introdutória sobre O capital, Haug chega mesmo a dizer, em defesa da perspectiva trans-histórica da teoria do valor, que “nada se altera desde os tempos de Homero, ou desde há milênios antes dos mesmos, ainda que o seu estatuto social [da forma valor – CMB], bem como o estatuto das formas que se vão edificando em cima dela, com destaque para a forma do preço, passem por metamorfoses enormes” (HAUG, 2005, p. 152 – destaque meu).
[11] Naturalmente, existem outros exemplos da interpretação histórica de Engels. Em Anti-Dühring, após citar a famosa referência acerca da inversão das leis de propriedade que regem a produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista – “a lei da apropriação ou lei da propriedade privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias, transforma-se, obedecendo sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto” (MEGA, II. 6, p. 538) –, Engels sustenta que essa “fase” corresponde à “história do desenvolvimento da burguesia” (ENGELS, 2015, p. 192).
[12] Existem seis exposições da forma-valor, todas diferentes entre si: (i) a primeira, tal como aparece em Para a crítica da economia política (1859); (ii) a segunda, na primeira edição do Livro I de O capital (1867); (iii) a terceira, na versão popularizada, incluída como anexo à primeira edição do Livro I; (iv) a quarta, igualmente divergente das anteriores, na segunda edição do Livro I de O capital (1872); (v) uma quinta exposição na tradução francesa do Livro I, revisada e corrigida pelo próprio Marx e (vi) a sexta, tal como aparece na autocrítica feita em Complementos e alterações à primeira edição, texto publicado pela primeira vez em 1987. Daí a enorme importância da hercúlea organização e nova redação do Livro I a partir dessas diferenças, feita por Thomas Kuczynski (2017).
[13] O desenvolvimento das reflexões de Backhaus parte de sua leitura, por volta de 1963, da primeira edição (1867) de O capital, na biblioteca de Hermann Brill, um político social-democrata que falecera alguns antes. Segundo Hoff, o texto era raramente conhecido naquele período, pelo menos na Alemanha Ocidental. As consequências da leitura – em especial, as diferenças na exposição da forma-valor – constituíram uma espécie de guia para a elaboração conceitual de Backhaus (HOFF, 2009, p. 83).
[14] Backhaus faz referência aqui à expressão de Horácio: parturiente montes, nascetur mus, isto é, “a montanha pariu um rato”, utilizada para descrever situações em que o resultado esperado é decepcionante frente à expectativa criada.
[15] É importante não confundir a tese das “ambiguidades” (Backhaus) com a tese das “ambivalências” (Heinrich).
[16] Como destaca Habermas já no início de suas reflexões: “a falta de clareza imperou desde o início sobre os fundamentos normativos da teoria social de Marx /.../. As melodias do socialismo ético foram tocadas sem êxito até o fim: uma ética filosófica que não se limita a enunciados metaéticos só pode encontrar lugar ainda hoje se conseguir reconstruir os pressupostos e procedimentos comunicativos universais de justificação de normas e valores” (HABERMAS, 2016, p. 28 – destaque meu).
[17] Em Resultados do processo imediato de produção – texto que originalmente seria a “ponte” entre o Livro I e II –, Marx também qualifica sua abordagem como “pura”. Ao discutir a relação entre fluidez do capital e versatilidade do trabalho – um axioma da economia política clássica –, Marx salienta: “a fim de apresentar as leis da economia política na sua pureza, é feita abstração destas fricções, tal como na mecânica pura é feita abstração de fricções particulares que têm de ser ultrapassadas em cada caso particular da sua aplicação” (MEGA, II. 4.1, p. 88 – destaque meu).
[18] Esta não é a única questão problemática envolvendo o dinheiro na crítica da economia política, algo relacionado à tese de Gerhard Göhler acerca da “redução dialética” (GÖHLER, 1980, p. 160). Em Para a crítica da economia política e na primeira edição de O capital, a forma-dinheiro não é desenvolvida a partir da análise da forma-valor, mas surge como resultado do processo de troca, exposto no segundo capítulo, um nível de abstração distinto daqueles – a relação de troca e a relação de valor entre mercadorias – tratados no primeiro capítulo do Livro I. Daí a presença da “forma IV” na edição de 1867 (MEGA, II. 5, p. 43), abandonada nas edições posteriores.
[19] Um raciocínio próximo já se manifestava nos Grundrisse, momento em que Marx faz um paralelo com a álgebra: “por exemplo, a, b, c são números; números em geral; contudo, são números inteiros em relação à a/b, b/c, c/b, c/a, b/a etc., que, todavia, os pressupõem como elementos gerais” (MEGA, II. 1.2, p. 359).
[20] A delimitação é importante, já que a avaliação deve ter seu tom calibrado quando se leva em consideração a análise feita em Para a crítica da economia política. Como destaca Arthur, no final da década de 1950 “Marx não estava de forma alguma claro sobre a relação entre lógica e história; a questão tem muito a sensação de uma discussão exploratória” (ARTHUR, 1996, p. 185).
[21] Note-se que a circulação simples de mercadorias, apesar de fundamental, só é exposta detalhadamente – o que inclui reflexões sobre sua “lei de apropriação” – nos Grundrisse e, sobretudo, no Urtext.
[22] Ainda assim, é importante reconhecer que a fundamental problemática dos níveis de abstração foi possivelmente colocada pela primeira vez por Lênin, em um artigo de 1899. No texto Novamente sobre o problema da teoria da realização, o líder da Revolução Russa destaca a diferença entre o “ideal do capitalismo” e sua “realidade efetiva” (LW, 4, p. 77). O “novamente” deve-se ao fato de Lenin já ter abordado a temática em Nota sobre o problema da teoria dos mercados: a propósito da polêmica entre o Sr. Tugan-Baranowski e o Sr. Bulgakow, escrito no final de 1898 e publicado em janeiro de 1899 (LW 4, p. 45).
[23] É digno de nota que na mesma carta Engels restringe o alcance da “lei do valor”. Se em Lei do valor e taxa de lucro a “produção simples de mercadorias” tem uma validade milenar, aqui Engels diz o seguinte: “eu deveria delimitar [o conceito de valor – CMB] historicamente, confinando-o expressamente à fase econômica na qual, só por si, tem e poderia ter havido qualquer questão de valor até agora – às formas sociais em que existe troca de mercadorias e produção de mercadorias; o comunismo primitivo não conhecia nenhum valor” (MEW, 39, p. 427).
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Resumo: O presente artigo tem como objetivo problematizar as críticas ao chamado “historicismo” de Engels. Ainda que este traga inúmeras dificuldades para a compreensão da crítica da economia política, isso não deve encampar um argumento de ruptura entre Marx e Engels. Na verdade, a análise das edições de O capital levanta problemas igualmente “engelsianos”, notadamente no exame do dinheiro. Ao invés de recolocar o clássico problema da relação entre o lógico e o histórico, ambos são compreendidos como diferentes níveis de abstração a partir dos quais pode-se construir uma teoria marxista da sociedade.
Palavras-chaves: Engels; Marx; lógico; histórico.
Engels versus Marx? From logical/historical to abstraction levels
Abstract: This article aims to question the criticisms of Engels’ so-called “historicism”. Even if this poses some difficulties in understanding the critique of political economy, this should not lead to an argument of rupture between Marx and Engels. In fact, the analysis of Capital editions raises equally “Engelsian” problems, notably in the examination of money. Instead of replacing the classic problem of the relationship between the logical and historical, both are understood as different levels of abstraction from which a Marxist theory of society can be constructed.
Keywords: Engels; Marx; logical; historical.
BARREIRA, C. M. “Engels contra Marx? Do lógico/histórico aos níveis de abstração”. Verinotio, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 110-33, jul./dez. 2020.
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