por José Paulo Netto
Esta é a ocasião que se me oferece para discorrer livremente sobre a questão da revolução em Florestan Fernandes, centralizando neste ensaio o que me parece ser o núcleo orientador da evolução mais decisiva do nosso maior cientista social.
Pretendo que estas reflexões possam contribuir de alguma maneira para iluminar as condições sob as quais Florestan, apropriando-se da imposição derivada de Marx, transitou militantemente para a perspectiva socialista revolucionária.
É supérfluo, desde logo, declarar que anima esta intervenção uma confessada solidariedade teórica (que não alude diferenças políticas táticas) com a empresa de Florestan, empresa sem a qual, no Brasil de hoje, julgo impensável passar do discurso à prática revolucionária eficiente. Anima-a igualmente, porém, a convicção de que Florestan, pelo seu magistério de ideias e de vida, jamais desejaria, nas homenagens que lhe rendemos, qua a admiração fraterna deslocasse a nota crítica que a sua obra nos induz a cultivar intransigentemente.
I
Os
anos finais da formação acadêmica básica de Florestan são também
aqueles em que ele participa da luta política direta (clandestina, na
resistência ao Estado Novo) — é conhecida sua vinculação a grupos de
cariz trotskista. São, ainda, os anos em que a sua aproximação à obra de
Marx se dá com o apelo às fontes originais — sabe-se que foi ele o primeiro a verter ao português em 1946, o texto marxiano de 1859, publicado sob o título Contribuição à crítica da economia política.
Logo em seguida, Florestan, num processo de dilaceramento intelectual e emocional cuja dramaticidade é cristalina em seus depoimentos retrospectivos[1], opta por uma carreira acadêmica stricto sensu, no curso da qual haveria de se destacar como mestre de alguns dos mais brilhantes analistas e pesquisadores da vida sociopolítica brasileira.
Ao longo do percurso acadêmico então iniciado, e que seria transitoriamente interrompido no Brasil pela repressão da ditadura instaurada em 1964 com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), a referência marxiana esteve sempre presente no horizonte intelectual de Florestan.[2] Mas a sua “opção profissional” pela Sociologia[3] no âmbito universitário determinou dois constrangimentos no seu tratamento do referencial marxista. De uma parte, Marx comparece como um dos constituintes da “ciência sociológica”; de outra, o rebatimento de seu influxo na intervenção cívica de Florestan é quase residual.
O empenho de Florestan para conferir à Sociologia carta de cidadania na cultura brasileira (esforço no qual ele prossegue, sobre bases renovadas, o magistério de Fernando de Azevedo) foi assentado numa dupla exigência. De um lado, cabia torná-la área de conhecimento, fonte de que emanariam ideias e propostas capazes de fornecer aportes à compreensão e ao equacionamento de problemas societários nacionais.[4] De outro, e consequentemente, cumpria exercitar e patrocinar procedimentos de investigação e pesquisa da mais alta qualidade, instaurando uma padrão analítico apto a resistir às mais severas provas de idoneidade e rigor.[5]
Logo em seguida, Florestan, num processo de dilaceramento intelectual e emocional cuja dramaticidade é cristalina em seus depoimentos retrospectivos[1], opta por uma carreira acadêmica stricto sensu, no curso da qual haveria de se destacar como mestre de alguns dos mais brilhantes analistas e pesquisadores da vida sociopolítica brasileira.
Ao longo do percurso acadêmico então iniciado, e que seria transitoriamente interrompido no Brasil pela repressão da ditadura instaurada em 1964 com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), a referência marxiana esteve sempre presente no horizonte intelectual de Florestan.[2] Mas a sua “opção profissional” pela Sociologia[3] no âmbito universitário determinou dois constrangimentos no seu tratamento do referencial marxista. De uma parte, Marx comparece como um dos constituintes da “ciência sociológica”; de outra, o rebatimento de seu influxo na intervenção cívica de Florestan é quase residual.
O empenho de Florestan para conferir à Sociologia carta de cidadania na cultura brasileira (esforço no qual ele prossegue, sobre bases renovadas, o magistério de Fernando de Azevedo) foi assentado numa dupla exigência. De um lado, cabia torná-la área de conhecimento, fonte de que emanariam ideias e propostas capazes de fornecer aportes à compreensão e ao equacionamento de problemas societários nacionais.[4] De outro, e consequentemente, cumpria exercitar e patrocinar procedimentos de investigação e pesquisa da mais alta qualidade, instaurando uma padrão analítico apto a resistir às mais severas provas de idoneidade e rigor.[5]
Este
ambicioso projeto intelectual e profissional (e, para avaliar da sua
magnitude, é suficiente evocar o que se passava nos incipientes cursos
das chamadas ciências humanas e sociais da Universidade brasileira dos anos 50), Florestan implementa-o à base da concepção de
Sociologia como ciência específica, num parâmetro similar, embora não
idêntico, ao daquela “ciência concreta rigorosamente especializada” tão
asperamente criticada por Lukács (1968, esp. item I do cap. VI).
Precisamente esta concepção responde pelo relevo e pela natureza que ao
referencial marxiano se atribuem então na obra de Florestan[6] — Marx não é apresentado indiferenciadamente ao lado de Durkheim, Weber, Manheim et alii, mas a sua radicalidade como fundador da inteligibilidade do ser social posto pelo capitalismo se esbate — submetido
a uma lente sociológica, o legado marxiano é contemplado como uma
vertente peculiar, entre outras, do cânone científico sociológico.
Quanto a intervenção cívica de Florestan, dada aquela “opção profissional”, compreende-se que tinha por conduto essencial o desempenho do sociólogo (o que não quer dizer, esclareça-se, que nosso autor tenha se ausentado da arena política; basta lembrar a sua atuação na Campanha pela Escola Pública e a sua solidariedade militante aos antifascistas ibéricos).[7] E se ele não esteve no centro de polêmicas tão acesas como as das “reformas de base”, na abertura dos anos 1960, foi tanto pela sua absorção na prática acadêmica como pelas reservas políticas à correção daquelas propostas.[8] O fato é que ele priorizou a incidência da sua intervenção cívica pelos mecanismos institucionais universitários, tomada a Universidade como polo de elaboração crítica intercorrente como o movimento social real.
O balanço do empreendimento de Florestan até 1964 é largamente positivo. Creio que, a partir dos seus desdobramentos, pode-se legitimamente falar de uma Sociologia consolidada no Brasil. Mas este não é o dado crucial para perfilar a atuação de Florestan como sociólogo — o nó está em que tipo trabalho sociológico ele realizou e estimulou. Esta é a questão.
Se insisto no traço profissional da opção acadêmica de Florestan é porque os mais de três lustros em que ela se exercitou — aproximadamente da travagem e reversão democráticas operadas sob o governo Dutra ao terrorismo de Estado decorrente do AI-5 — têm servido para uma interpretação no mínimo parcial e unilateral do seu itinerário. Frequentemente se o apresenta, nesse período, como um intelectual integrado ao establishment universitário — e isto com alusões não raro ambíguas. Com efeito, neste período, o eixo da atuação de Florestan foi o circuito universitário oficial.[9] Mas a Sociologia que ele institucionalizou (ou que foi institucionalizada com o seu destacadíssimo concurso) esteve sempre comprometida com a pesquisa da realidade brasileira. O tipo de trabalho sociológico que ele realizou pessoalmente e estimulou (através da sua orientação acadêmica e da sua inserção numa determinada hierarquia universitária) voltou-se sistematicamente para os processos sociais ocorrentes na sociedade brasileira. E foi com referência a essa pesquisa do real que Florestan dedicou-se a apurar o instrumental analítico sociológico. Vale dizer: a sofisticação metodológica e o afinamento técnico receberam a sua atenção na escala em que estava em tela a compreensão do Brasil.
Isto significa que a Sociologia de Florestan abrigava um potencial explosivo — e duplamente explosivo: em face da instituição universitária e em face da sua referida “opção profissional” (não me parece questão pertinente indagar do nível de autoconsciência de Florestan naquele momento, embora me pareça provável supor que fosse alto, quase estratégico).
Em relação à instituição acadêmica, o esforço de conhecimento (sociológico) de Florestan implicava um grau mínimo de autonomia universitária e um espaço de polêmica e liberdade relativamente amplo — sem os quais a Universidade não poderia existir como o já mencionado polo de elaboração intercorrente com o movimento social real. Uma redução daquele grau de autonomia para aquém de um limite tolerável[10] e um encolhimento qualquer daquele espaço seriam suficientes pra curto-circuitar o desempenho e a inserção universitários de Florestan. O seu trabalho (sociológico), porquanto medularmente vinculado ao movimento social real, colidiria frontalmente com a menor obstrução dos canais entre a universidade e a realidade profunda dos processos sociais brasileiros.
Enquanto tais autonomia e espaço se mantiveram, Florestan não só se moveu (é verdade que enfrentando alguns problemas) no interior da esfera acadêmica; pôde, ainda, dar inteiro curso à sua “opção profissional” amarrando, pela mediação das suas pesquisas e das que orientava, a tensão que essa opção provocava no seu universo pessoal, dadas as suas ideias socialistas, encravadas no seu pensamento desde os anos 1940. A tensão entre seus ideais socialistas e a sua “opção profissional” (e aqui residia o segundo nível daquela potencialidade explosiva) mantinha-se em estado larvar, travada pela convicção de que a produção de conhecimentos sobre a realidade brasileira, propiciada pela sua dedicação à Sociologia, aportava insumos às forças sociais que poderiam colocar-se objetivos socialistas.
Em poucas palavras: a Sociologia implementada por Florestan continha e detinha as contradições entre a sua “opção profissional” e o seu ideário socialista. Faltando-lhe os suportes institucionais para a continuidade da produção daquele tipo de conhecimento, entraria em colapso o precário equilíbrio entre o sociólogo e o socialista — o duplo potencial explosivo acumulado pelo e no conhecimento do Brasil seria deflagrado.
O golpe de abril de 1964 cumpriu esta função: entre 1964 e 1968, o regime derivado do movimento cívico-militar reacionário deslocou e substituiu rapidamente o conjunto de condições que, até então, tinham permitido a Florestan enquadrar o seu ideário socialista no bojo do seu trabalho enquanto sociólogo. Entre o primeiro Ato Institucional e o AI-5, respondendo à disposição das forças políticas e sociais no país, Florestan se radicaliza velozmente: o substrato ídeo-político do seu pensamento ganha dinâmica inédita, movido por aquela tensão que, por mais de três lustros, o sociólogo profissional conseguira conter graças à imersão na pesquisa do Brasil. Na sequência, a consolidação da autocracia burguesa operou a subversão radical da estrutura anímica de Florestan — estilhaçados os quadros nos quais a sua condição profissional (o sociólogo) se mantinha, saturava-se o seu mundo intelectual e afetivo noutra opção, a de pedagogo socialista revolucionário.
Quanto a intervenção cívica de Florestan, dada aquela “opção profissional”, compreende-se que tinha por conduto essencial o desempenho do sociólogo (o que não quer dizer, esclareça-se, que nosso autor tenha se ausentado da arena política; basta lembrar a sua atuação na Campanha pela Escola Pública e a sua solidariedade militante aos antifascistas ibéricos).[7] E se ele não esteve no centro de polêmicas tão acesas como as das “reformas de base”, na abertura dos anos 1960, foi tanto pela sua absorção na prática acadêmica como pelas reservas políticas à correção daquelas propostas.[8] O fato é que ele priorizou a incidência da sua intervenção cívica pelos mecanismos institucionais universitários, tomada a Universidade como polo de elaboração crítica intercorrente como o movimento social real.
O balanço do empreendimento de Florestan até 1964 é largamente positivo. Creio que, a partir dos seus desdobramentos, pode-se legitimamente falar de uma Sociologia consolidada no Brasil. Mas este não é o dado crucial para perfilar a atuação de Florestan como sociólogo — o nó está em que tipo trabalho sociológico ele realizou e estimulou. Esta é a questão.
Se insisto no traço profissional da opção acadêmica de Florestan é porque os mais de três lustros em que ela se exercitou — aproximadamente da travagem e reversão democráticas operadas sob o governo Dutra ao terrorismo de Estado decorrente do AI-5 — têm servido para uma interpretação no mínimo parcial e unilateral do seu itinerário. Frequentemente se o apresenta, nesse período, como um intelectual integrado ao establishment universitário — e isto com alusões não raro ambíguas. Com efeito, neste período, o eixo da atuação de Florestan foi o circuito universitário oficial.[9] Mas a Sociologia que ele institucionalizou (ou que foi institucionalizada com o seu destacadíssimo concurso) esteve sempre comprometida com a pesquisa da realidade brasileira. O tipo de trabalho sociológico que ele realizou pessoalmente e estimulou (através da sua orientação acadêmica e da sua inserção numa determinada hierarquia universitária) voltou-se sistematicamente para os processos sociais ocorrentes na sociedade brasileira. E foi com referência a essa pesquisa do real que Florestan dedicou-se a apurar o instrumental analítico sociológico. Vale dizer: a sofisticação metodológica e o afinamento técnico receberam a sua atenção na escala em que estava em tela a compreensão do Brasil.
Isto significa que a Sociologia de Florestan abrigava um potencial explosivo — e duplamente explosivo: em face da instituição universitária e em face da sua referida “opção profissional” (não me parece questão pertinente indagar do nível de autoconsciência de Florestan naquele momento, embora me pareça provável supor que fosse alto, quase estratégico).
Em relação à instituição acadêmica, o esforço de conhecimento (sociológico) de Florestan implicava um grau mínimo de autonomia universitária e um espaço de polêmica e liberdade relativamente amplo — sem os quais a Universidade não poderia existir como o já mencionado polo de elaboração intercorrente com o movimento social real. Uma redução daquele grau de autonomia para aquém de um limite tolerável[10] e um encolhimento qualquer daquele espaço seriam suficientes pra curto-circuitar o desempenho e a inserção universitários de Florestan. O seu trabalho (sociológico), porquanto medularmente vinculado ao movimento social real, colidiria frontalmente com a menor obstrução dos canais entre a universidade e a realidade profunda dos processos sociais brasileiros.
Enquanto tais autonomia e espaço se mantiveram, Florestan não só se moveu (é verdade que enfrentando alguns problemas) no interior da esfera acadêmica; pôde, ainda, dar inteiro curso à sua “opção profissional” amarrando, pela mediação das suas pesquisas e das que orientava, a tensão que essa opção provocava no seu universo pessoal, dadas as suas ideias socialistas, encravadas no seu pensamento desde os anos 1940. A tensão entre seus ideais socialistas e a sua “opção profissional” (e aqui residia o segundo nível daquela potencialidade explosiva) mantinha-se em estado larvar, travada pela convicção de que a produção de conhecimentos sobre a realidade brasileira, propiciada pela sua dedicação à Sociologia, aportava insumos às forças sociais que poderiam colocar-se objetivos socialistas.
Em poucas palavras: a Sociologia implementada por Florestan continha e detinha as contradições entre a sua “opção profissional” e o seu ideário socialista. Faltando-lhe os suportes institucionais para a continuidade da produção daquele tipo de conhecimento, entraria em colapso o precário equilíbrio entre o sociólogo e o socialista — o duplo potencial explosivo acumulado pelo e no conhecimento do Brasil seria deflagrado.
O golpe de abril de 1964 cumpriu esta função: entre 1964 e 1968, o regime derivado do movimento cívico-militar reacionário deslocou e substituiu rapidamente o conjunto de condições que, até então, tinham permitido a Florestan enquadrar o seu ideário socialista no bojo do seu trabalho enquanto sociólogo. Entre o primeiro Ato Institucional e o AI-5, respondendo à disposição das forças políticas e sociais no país, Florestan se radicaliza velozmente: o substrato ídeo-político do seu pensamento ganha dinâmica inédita, movido por aquela tensão que, por mais de três lustros, o sociólogo profissional conseguira conter graças à imersão na pesquisa do Brasil. Na sequência, a consolidação da autocracia burguesa operou a subversão radical da estrutura anímica de Florestan — estilhaçados os quadros nos quais a sua condição profissional (o sociólogo) se mantinha, saturava-se o seu mundo intelectual e afetivo noutra opção, a de pedagogo socialista revolucionário.
Entre
1964 e 1968, Florestan ultrapassa o terreno da Sociologia (nos termos
da “ciência concreta”) e franqueia a fronteira do socialismo revolucionário.
Deixa de ser um sociólogo: recupera para a análise da sociedade a
crítica da economia política, converte-se pedagogo da revolução. Foi a contrarrevolução (burguesa) que situou Florestan no eixo da revolução (proletária).
A realidade da contrarrevolução (burguesa), estourando com as condições que permitiram a coexistência, no universo pessoal total de Florestan, da Sociologia enquanto “opção profissional” com as suas ideias socialistas não o conduziu, mera e simplesmente, a subordinar o seu exercício intelectual ao seu ideário socialista. A subversão radical que se opera na sua estrutura anímica, se não estou em erro, é bem mais complexa.
A contrarrevolução (burguesa), na sua realidade, impôs-se a Florestan como Esfinge. Decifrá-la vai lhe demandar um esforço intensivo e de pensamento e repensamento. As contradições que por mais de uma década e meia jazeram entre ideias socialistas e investigação e magistério sociológico-acadêmicos serão recolocadas no novo plano instaurado pela contrarrevolução (burguesa), mas repostas em quadros que determinarão uma substantiva alteração delas mesmas, polarizadas numa relação visceralmente nova e serão enfim superadas. Trata-se de uma alteração substantiva que afeta o inteiro pensamento de Florestan, seu ideário socialista e sua vocação teórica — e numa simultaneidade que só o artifício da abstração pode distinguir: por um lado, a potenciação constante das ideais socialistas através de um confronto direto com a ordem autocrática-burguesa, no obstinado ofício do que ele retomou como “desobediência civil”; por outro lado, a retotalização do seu conhecimento da sociedade brasileira num processo de nova investigação que, lançando-o para além dos limites da análise sociológica, condu-lo a readialogar com o legado de Marx.[11]
A realidade da contrarrevolução (burguesa) precipita no pensamento — e na vida — de Florestan as tensões que aí existiam, mas exatamente porque ele se propõe a iluminar o processamento da contrarrevolução (sua natureza, seus ritmos, sua funcionalidade e sua mesma viabilidade), a rotação experimentada por ele redimensiona globalmente a orientação do seu pensamento. Se não é possível apanhar aqui a complicada dinâmica desse giro, pelo menos é necessário assinalar alguns dos seus nódulos.
Mencionei, atrás, que o próprio Florestan marxiano nunca esteve ausente do mundo intelectual de Florestan. Na rotação a que me refiro agora, esse referencial emerge — mas, crescentemente, como parâmetro crítico-metodológico e como privilegiado (mas não exclusivo) modelo de tratamento do material histórico-social “a quente”. A abordagem histórico-sistemática começa a impor-se à e na obra de Florestan: a urgência imperativa de agarrar a múltipla causalidade da contrarrevolução (burguesa) e todas as duas incidências rompe com os marcos e as operações próprias à tradição da divisão especializada do trabalho intelectual e Florestan vai tomar Marx como modelo análitico-explicativo. E a própria contextualidade da contrarrevolução (burguesa) implica o avanço para além de Marx: um elenco de marxistas, que frequentara o universo intelectual de Florestan de modo não essencial, passa a ser integrado como matriz teórica (Engels, Trótski e, particularmente, Lênin).[12] Complementa-se o legado marxiano com a herança marxista.
Assim, o referencial marxista de Florestan adquire uma proeminência e uma funcionalidade de que carecia anteriormente: se, no Florestan sociólogo, ele era um dos recursos científicos a que, no seio de um repertório teórico e metodológico muito mais amplo, recorria o investigador que parecia não temer os riscos do ecletismo, no Florestan que tem diante de si a problemática viva e brutal da contrarrevolução (burguesa) o referencial em tela ganha o estatuto de cânone de explicação e compreensão histórico-social. É a partir deste balizamento crucial e determinante que se dispõem os demais recursos e procedimentos alternativos, agora na condição de fontes subsidiárias e subalternas.
Deste reposicionamento do referencial marxista no campo intelectual de Florestan decorrem profundas consequências teóricas e analíticas (e, também, ídeo-políticas). Duas delas, intimamente conexas, merecem especial destaque. A primeira é a remissão da dinâmica dos processos societários ao movimento constitutivo dos circuitos do capital; com ela, a crítica da economia política ganha na obra de Florestan uma relevância heurística precedentemente ignorada; trabalhada e desenvolvida na perspectiva de Marx (v.g., sem qualquer viés economicista), essa crítica, com o elenco de categorias que lhe é pertinente, passa a embasar as demarcações teórico-analíticas de Florestan. A segunda é a resolução das constelações fenomênicas sociopolíticas na processualidade histórica tomada como totalidade: é a totalização em curso das dimensões determinantes de uma estrutura dinâmica que oferece a Florestan o padrão heurístico para o trato de formas histórico-sociais particulares (como a contrarrevolução burguesa). É supérfluo complementar que, ao cabo desse tour de force, nosso autor transcendeu de muito a tradição especializada das chamadas ciências sociais e situou-se no cerne daquela ciência da história unitária e reconhecida por Marx e Engels como a única ciência.
Convém realçar ao limite uma característica fulcral deste processo de plena maturação intelectual (e existencial) que acabou por conferir a Florestan seu perfil teórico definitivo. Todo ele se realiza em face da urgência de explicar e compreender a contrarrevolução (burguesa). A rotação de Florestan não decorreu da serenidade confortável de uma reflexão acadêmica — ao contrário: ela foi conformada pela resistência aos processos societários submetidos à maré-montante da contrarrevolução (burguesa). Este elemento é constitutivo do giro iniciado pelo pensamento de Florestan na segunda metade da década de 1960: precisamente as exigências emanadas do seu objeto de análise determinam a emergência de um novo padrão heurístico. A mais alta competência teórica conjuga-se aqui com um imperativo que dá o tom maior do comportamento do investigador: o objeto lhe requer procedimentos determinados, o investigador os efetiva — está em pauta a fidelidade do sujeito ao seu objeto. Nessa moldura, as escolhas teórico-metodológicas do pesquisador não são opções subjetivas, aleatórias e, menos ainda, artifícios de investigação: têm um caráter necessário. Sublinhar este traço pertinente e distintivo das démarches de Florestan é essencial para apanhar o que me parece o mais peculiar no conjunto do seu trabalho desse período decisivo: ele “apenas” traz à consciência teórica as determinações constituintes e constituídas no processo do seu objeto.
De fato, o referido reposicionamento do referencial marxista no universo intelectual de Florestan é uma exigência intrínseca do desvendamento da lógica e movimento da contrarrevolução (burguesa). Se é verdade que boa parte da categorização de que ele se vale já estava dada no seu acervo teórico, é mais verdadeiro ainda que a sua mobilização deveu-se à necessidade posta pelo exame daquele movimento. Não é que Florestan desconhecesse ou desprezasse temáticas como imperialismo, lei do movimento desigual e combinado, lutas de classes, consciência de classe, acumulação e valorização do capital, vanguarda-partido-massa etc.; agora, contudo, são instrumentalizadas e desdobradas na capturação da lógica da contrarrevolução (burguesa) e só isto propicia a reconstrução ideal e íntegra de tal lógica. Vale dizer: redimensionadas na totalização da história em curso, calibradas na análise concreta do movimento social real, de fato e nas mãos de Florestan estas “categorias exprimem formas e condições de existência” (Marx).
No mesmo processo, Florestan tem subvertido o seu mundo anímico: o bouleversement que experimenta não se restringe, como indiquei, ao seu desempenho teórico-crítico — as suas antigas ideias socialistas ganham uma ponderação diversa, mais densa, perdem certo cariz iluminista e adquirem concreção no mesmo ritmo em que seu universo intelectual é galvanizado por novos parâmetros analítico-interpretativos.[13] É que a recuperação das categorias da tradição marxista, neste novo patamar teórico e histórico, operando-se na análise concreta do movimento social real, induz Florestan a recuperar como um todo a impostação teórico-crítica de Marx. Com isto, o projeto histórico do proletariado, calço interminável da perspectiva socialista revolucionária, deixa de ser, na consciência teórica, uma petição de princípio, convertendo-se em ponto arquimédico da análise concreta, inscrevendo-se como contraponto necessário do movimento da própria contrarrevolução (burguesa).
A rotação operada no pensamento de Florestan, no confronto (teórico-prático) com a contrarrevolução (burguesa), está longe de plasmar um corte absoluto com o seu trabalho anterior efetivado nos marcos da Sociologia. A seguinte pontuação pode servir para esclarecer o problema, desde que substitua, na citação, o filósofo por teórico:
II
A realidade da contrarrevolução (burguesa), estourando com as condições que permitiram a coexistência, no universo pessoal total de Florestan, da Sociologia enquanto “opção profissional” com as suas ideias socialistas não o conduziu, mera e simplesmente, a subordinar o seu exercício intelectual ao seu ideário socialista. A subversão radical que se opera na sua estrutura anímica, se não estou em erro, é bem mais complexa.
A contrarrevolução (burguesa), na sua realidade, impôs-se a Florestan como Esfinge. Decifrá-la vai lhe demandar um esforço intensivo e de pensamento e repensamento. As contradições que por mais de uma década e meia jazeram entre ideias socialistas e investigação e magistério sociológico-acadêmicos serão recolocadas no novo plano instaurado pela contrarrevolução (burguesa), mas repostas em quadros que determinarão uma substantiva alteração delas mesmas, polarizadas numa relação visceralmente nova e serão enfim superadas. Trata-se de uma alteração substantiva que afeta o inteiro pensamento de Florestan, seu ideário socialista e sua vocação teórica — e numa simultaneidade que só o artifício da abstração pode distinguir: por um lado, a potenciação constante das ideais socialistas através de um confronto direto com a ordem autocrática-burguesa, no obstinado ofício do que ele retomou como “desobediência civil”; por outro lado, a retotalização do seu conhecimento da sociedade brasileira num processo de nova investigação que, lançando-o para além dos limites da análise sociológica, condu-lo a readialogar com o legado de Marx.[11]
A realidade da contrarrevolução (burguesa) precipita no pensamento — e na vida — de Florestan as tensões que aí existiam, mas exatamente porque ele se propõe a iluminar o processamento da contrarrevolução (sua natureza, seus ritmos, sua funcionalidade e sua mesma viabilidade), a rotação experimentada por ele redimensiona globalmente a orientação do seu pensamento. Se não é possível apanhar aqui a complicada dinâmica desse giro, pelo menos é necessário assinalar alguns dos seus nódulos.
Mencionei, atrás, que o próprio Florestan marxiano nunca esteve ausente do mundo intelectual de Florestan. Na rotação a que me refiro agora, esse referencial emerge — mas, crescentemente, como parâmetro crítico-metodológico e como privilegiado (mas não exclusivo) modelo de tratamento do material histórico-social “a quente”. A abordagem histórico-sistemática começa a impor-se à e na obra de Florestan: a urgência imperativa de agarrar a múltipla causalidade da contrarrevolução (burguesa) e todas as duas incidências rompe com os marcos e as operações próprias à tradição da divisão especializada do trabalho intelectual e Florestan vai tomar Marx como modelo análitico-explicativo. E a própria contextualidade da contrarrevolução (burguesa) implica o avanço para além de Marx: um elenco de marxistas, que frequentara o universo intelectual de Florestan de modo não essencial, passa a ser integrado como matriz teórica (Engels, Trótski e, particularmente, Lênin).[12] Complementa-se o legado marxiano com a herança marxista.
Assim, o referencial marxista de Florestan adquire uma proeminência e uma funcionalidade de que carecia anteriormente: se, no Florestan sociólogo, ele era um dos recursos científicos a que, no seio de um repertório teórico e metodológico muito mais amplo, recorria o investigador que parecia não temer os riscos do ecletismo, no Florestan que tem diante de si a problemática viva e brutal da contrarrevolução (burguesa) o referencial em tela ganha o estatuto de cânone de explicação e compreensão histórico-social. É a partir deste balizamento crucial e determinante que se dispõem os demais recursos e procedimentos alternativos, agora na condição de fontes subsidiárias e subalternas.
Deste reposicionamento do referencial marxista no campo intelectual de Florestan decorrem profundas consequências teóricas e analíticas (e, também, ídeo-políticas). Duas delas, intimamente conexas, merecem especial destaque. A primeira é a remissão da dinâmica dos processos societários ao movimento constitutivo dos circuitos do capital; com ela, a crítica da economia política ganha na obra de Florestan uma relevância heurística precedentemente ignorada; trabalhada e desenvolvida na perspectiva de Marx (v.g., sem qualquer viés economicista), essa crítica, com o elenco de categorias que lhe é pertinente, passa a embasar as demarcações teórico-analíticas de Florestan. A segunda é a resolução das constelações fenomênicas sociopolíticas na processualidade histórica tomada como totalidade: é a totalização em curso das dimensões determinantes de uma estrutura dinâmica que oferece a Florestan o padrão heurístico para o trato de formas histórico-sociais particulares (como a contrarrevolução burguesa). É supérfluo complementar que, ao cabo desse tour de force, nosso autor transcendeu de muito a tradição especializada das chamadas ciências sociais e situou-se no cerne daquela ciência da história unitária e reconhecida por Marx e Engels como a única ciência.
Convém realçar ao limite uma característica fulcral deste processo de plena maturação intelectual (e existencial) que acabou por conferir a Florestan seu perfil teórico definitivo. Todo ele se realiza em face da urgência de explicar e compreender a contrarrevolução (burguesa). A rotação de Florestan não decorreu da serenidade confortável de uma reflexão acadêmica — ao contrário: ela foi conformada pela resistência aos processos societários submetidos à maré-montante da contrarrevolução (burguesa). Este elemento é constitutivo do giro iniciado pelo pensamento de Florestan na segunda metade da década de 1960: precisamente as exigências emanadas do seu objeto de análise determinam a emergência de um novo padrão heurístico. A mais alta competência teórica conjuga-se aqui com um imperativo que dá o tom maior do comportamento do investigador: o objeto lhe requer procedimentos determinados, o investigador os efetiva — está em pauta a fidelidade do sujeito ao seu objeto. Nessa moldura, as escolhas teórico-metodológicas do pesquisador não são opções subjetivas, aleatórias e, menos ainda, artifícios de investigação: têm um caráter necessário. Sublinhar este traço pertinente e distintivo das démarches de Florestan é essencial para apanhar o que me parece o mais peculiar no conjunto do seu trabalho desse período decisivo: ele “apenas” traz à consciência teórica as determinações constituintes e constituídas no processo do seu objeto.
De fato, o referido reposicionamento do referencial marxista no universo intelectual de Florestan é uma exigência intrínseca do desvendamento da lógica e movimento da contrarrevolução (burguesa). Se é verdade que boa parte da categorização de que ele se vale já estava dada no seu acervo teórico, é mais verdadeiro ainda que a sua mobilização deveu-se à necessidade posta pelo exame daquele movimento. Não é que Florestan desconhecesse ou desprezasse temáticas como imperialismo, lei do movimento desigual e combinado, lutas de classes, consciência de classe, acumulação e valorização do capital, vanguarda-partido-massa etc.; agora, contudo, são instrumentalizadas e desdobradas na capturação da lógica da contrarrevolução (burguesa) e só isto propicia a reconstrução ideal e íntegra de tal lógica. Vale dizer: redimensionadas na totalização da história em curso, calibradas na análise concreta do movimento social real, de fato e nas mãos de Florestan estas “categorias exprimem formas e condições de existência” (Marx).
No mesmo processo, Florestan tem subvertido o seu mundo anímico: o bouleversement que experimenta não se restringe, como indiquei, ao seu desempenho teórico-crítico — as suas antigas ideias socialistas ganham uma ponderação diversa, mais densa, perdem certo cariz iluminista e adquirem concreção no mesmo ritmo em que seu universo intelectual é galvanizado por novos parâmetros analítico-interpretativos.[13] É que a recuperação das categorias da tradição marxista, neste novo patamar teórico e histórico, operando-se na análise concreta do movimento social real, induz Florestan a recuperar como um todo a impostação teórico-crítica de Marx. Com isto, o projeto histórico do proletariado, calço interminável da perspectiva socialista revolucionária, deixa de ser, na consciência teórica, uma petição de princípio, convertendo-se em ponto arquimédico da análise concreta, inscrevendo-se como contraponto necessário do movimento da própria contrarrevolução (burguesa).
III
A rotação operada no pensamento de Florestan, no confronto (teórico-prático) com a contrarrevolução (burguesa), está longe de plasmar um corte absoluto com o seu trabalho anterior efetivado nos marcos da Sociologia. A seguinte pontuação pode servir para esclarecer o problema, desde que substitua, na citação, o filósofo por teórico:
As principais linhas esquemáticas de uma ideia sintetizadora fundamental podem estar presentes — ou melhor: têm que estar presentes —
na mente de um filósofo quando este desenvolve, num texto determinado,
algumas de suas implicações concretas em contextos particulares. É claro
que uma tal ideia pode experimentar transformações importantes [...].
[Mas] não se pode entender adequadamente o pensamento de um filósofo sem
alcançar, através de seus vários estratos, aquela síntese original que o
estrutura dialeticamente, em todas as suas manifestações sucessivas
(Mészáros, 1972, p. 17).
Ora, a “síntese original”, a “ideia sintetizadora fundamental” que está na base do pensamento de Florestan parece-me justamente a explicação e a compreensão da particularidade histórico-social brasileira — essa particularidade constitui o alfa e o ômega do seu itinerário. É ela que orienta, sob formas e modalidades diferenciadas, toda a sua evolução, desde a “opção profissional” pela Sociologia à pedagogia socialista. A busca dessas explicações e compreensão — enervada desde a sua gênese pelos ideais socialistas — comanda todo o desempenho de Florestan.
Nesse sentido, Florestan pertence àquela linhagem (ou “família intelectual”, como gosta de dizer Octavio Ianni)[14] de pensadores que vem de Euclides da Cunha, passando por Astrojildo Pereira e Caio Prado Jr. e deságua hoje num arco bastante heterogêneo de investigadores cuja matéria é a história da formação social brasileira tratada do ponto de vista das classes e camadas sociais exploradas e oprimidas. Neste espectro analítico, a obra de Florestan destaca-se também por notas que fizeram dele um outsider em face dos esquemas de convivência da intelectualidade brasileira.[15] Não me deterei nestas notas — interessa-me mais tematizar a rotação de que até aqui me ocupei.
Ela se opera, como destaquei, na continuidade da busca de uma explicação e uma compreensão da concreta realidade brasileira. O acúmulo de pesquisas da sua Sociologia anterior, na passagem dos anos 1960 aos 70, engrena-se com os novos dados postos pelo aborto das vias democrático-nacionais latino-americanas — porque Florestan logo apreende a dimensão continental, supranacional, da contrarrevolução (burguesa). Nessa imbricação emerge o giro referido: ao contextualizar o processamento da contrarrevolução em escala supranacional, Florestan transita para um marco analítico-interpretativo diverso; as determinações econômico-políticas da integração subalterna à dinâmica imperialista entram em cena. O trânsito de Florestan para esse novo patamar analítico-interpretativo se desenha nas suas investigações sobre as conexões entre o sistema imperialista (com o prolongamento substancial dos estatutos de natureza colonial) e os capitalismos dependentes nacionais, conexões que gravitam num campo travejado pelo subdesenvolvimento e pela estrutura de classes próprios à periferia explorada do circuito capitalista (cf. especialmente Fernandes, 1968 e 1973).
A apreensão da estrutura interna desses processos histórico-sociais macroscópicos exige de Florestan, no andamento da sua investigação, o resgate de categorias próprias e exclusivas da tradição marxista. O decisivo é que tal resgate se impõe — repito-o —a partir do material de pesquisa; é o movimento social real que requisita o arsenal categorial-heurístico — eis a mencionada fidelidade do sujeito ao objeto. Assim, a recuperação categorial marxista não resulta de um exercício intelectivo: ela se opera no tratamento concreto do material histórico.[16] A derivação é que a reflexão não “aplica” categorias ou indicações teórico-metodológicas — recria-as, extraindo-as do movimento social real quando de sua reconstrução ideal (teórica), e eis aqui a chave da recuperação da impostação teórica de Marx.
Nesse passo de Florestan é que me parece constituir-se um dos elementos da sua singularidade em face da “família intelectual” a que pertence. Ele não parte de (legítimas) pressuposições teóricas para o trato do seu material; é esse trato que repõe as determinações como extraídas da objetividade do processo analisado. A investigação da contrarrevolução (burguesa) não é simplesmente conduzida a partir de um ponto de vista revolucionário: ela adensa a perspectiva socialista revolucionária como necessário vir-a-ser (devenir) dos processos societários que contém e retém.
O novo patamar analítico-interpretativo de Florestan, até aqui sumariamente desenhado, encontra a sua plena explicitação — maturada ao longo do giro iniciado no segundo lustro da década de 1960 — em A revolução burguesa no Brasil (Fernandes, 1975), obra que concretiza canonicamente à “síntese original" de Florestan.[17]
A revolução burguesa no Brasil agarra o fio do movimento histórico-social constitutivo da moderna sociedade de classes no Brasil, demarcado no cotejo do desenvolvimento estrutural do capitalismo “clássico” e do “dependente”. Arquitetura inclusiva, reatualiza os conhecimentos produzidos anteriormente por Florestan enquanto sociólogo, mas sob coordenadas teórico-críticas marxistas. O reaproveitamento de resultados de pesquisas precedentes (bem como de seus substratos teóricos) apenas subsidia a reprodução ideal (teórica) do movimento da totalidade histórica constituída pela formação social brasileira.[18]
O centro retor dessa operação de reprodução ideal (teórica) — que reconstrói os processos que determinaram a descolonização interrompida, o estatuto colonial semipreservado, a emergência da ordem competitiva, o nascente capitalismo monopolista, a sistemática restrição dos institutos democráticos, a heteronomia econômica — é posto pela dinâmica imanente ao processo societário macroscópico. A resposta à contrarrevolução (burguesa), exigindo de Florestan o desvelamento do seu inteiro processo, determina a elaboração de uma teoria da gênese e do desenvolvimento do capitalismo no espaço nacional brasileiro.[19] É no curso dessa elaboração — núcleo duro de A revolução burguesa no Brasil — que os sujeitos do movimento social real (as classes sociais) e seus projetos histórico-sociais (o rechaço do potencial anticapitalista contido nas possibilidades de afirmação da democracia conduzindo a burguesia à contrarrevolução preventiva e a resistência proletária à antidemocracia burguesa impelindo ao questionamento da ordem capitalista) vão emergindo e que o pensamento de Florestan é levado a identificar a revolução como componente histórico-concreto do movimento social real. As coordenadas teórico-críticas do referencial marxista são conformadas na verificação da dinâmica histórica efetiva. a apreensão do processo macroscópico do qual a evidência é a contrarrevolução (burguesa) revela tanto a sua necessidade na passagem ao estágio monopolista quanto a sua polarização com a revolução (proletária). É pela análise concreta da realidade brasileira que Florestan chega à compreensão teórica do processo da revolução (proletária).
Estamos assistindo à apreensão da revolução proletária como possibilidade histórica real não partir da referência à categoria teórica, mas a partir da análise concreta do processo “a quente”, “no calor da hora”. Na investigação, a descoberta galvaniza o inteiro universo intelectual de Florestan, reorientando o seu exercício teórico segundo a impostação da tradição marxista; porém, satura ainda a sua estrutura anímica, conferindo às antigas petições ideais socialistas um suporte material agora tornado visível (a objetiva resistência proletária). Na exposição, a rotação se desnuda plenamente, com o discurso desbordando os territórios demarcados pela especialização acadêmico-científica, fundindo as determinações teóricas numa reconstrução abrangente acionada por um pathos até então inencontrável na obra precedente de Florestan.
É nos desdobramentos da sua “síntese original”, a pesquisa da particularidade histórica da formação social brasileira, que o último Florestan esclarece e ilumina: a contrarrevolução (burguesa) factual, empírica, imediata, dá-lhe conta da revolução (proletária) possível, necessária para a classe operária, subterraneamente em ato.
IV
A revolução burguesa no Brasil concretiza a assunção criativa e criadora do legado marxista de Florestan e define conclusivamente os seu papel intelectual de promotor de uma pedagogia socialista revolucionária. Os anos que se sucedem à publicação desta opus magnum são os dos confrontos finais como o militar-fascismo, de aberta “desobediência civil”, de intensa intervenção cívica e de uma retomada, aliás muito livre, da atividade acadêmica.
A recuperação da impostação teórica marxiana e da tradição marxista, operada no processo de radical tensionamento intelectual e existencial de Florestan no seu enfrentamento com a contrarrevolução (burguesa) e resolvida numa reprodução teórico-revolucionária da constituição da formação social brasileira fez emergir um pensador que, a partir de então, também se dedica a tematizar aspectos internos da teoria marxiana e marxista. Florestan agora revela-se sobretudo um ensaísta, que se ocupa do processo sociopolítico em curso (eis quando volta-se a dirigir frequentemente, pela imprensa, ao chamado grande público), mas direciona muita da sua energia à discussão especificamente teórica.[20]
A sua produção ensaística tem um forte componente polêmico, de luta ideológica. De uma parte, Florestan posiciona-se contundentemente contra uma certa “cultura de esquerda” que vicejou, sob as vistas complacentes da ditadura, no estabelecimento universitário —“cultura de esquerda" aparentemente progressista e de “oposição”, que, sob o verniz de erudição profunda, tergiversa o conteúdo negativo e erosivo da obra marxiana, mumifica-a como arquitetura do racionalismo otimista do século XIX, manipula Marx contra o marxismo (e os marxistas) etc.[21] De outra, suas intervenções visam igualmente as contrafações políticas que jogam sentido da integração, desnaturando-o, do projeto socialista no marco burguês — e, aqui, como não poderia deixar de ser, seu alvo direto é a social-democracia[22].
Nessa produção ensaística, a problemática da revolução é axial.[23] Mas se me afigura muito simplista lê-la considerando que a centralidade da categoria de revolução que nela comparece deve-se somente à motivação polêmica. Penso que a questão é bem outra: as condições — históricas e crítico-analíticas — sob as quais Florestan recuperou a impostação teórica de Marx é que determinam esse traço pertinente da sua produção intelectual (e da sua militância cívica) a partir da segunda metade dos anos 1970. O privilégio da problemática da revolução significa, em Florestan, que a obra de Marx é toda ela interpretada em função da prática política (inclusive no que demanda de elaboração teórica) que pode conduzir à ultrapassagem do mundo burguês. Isto é: a centralidade temática, crítico-analítica e categorial da revolução tem raízes históricas e teóricas no pensamento de Florestan que desbordam largamente a sua função polêmica.
Se a argumentação que venho desenvolvendo tem um grão de verdade e é pertinente em alguma medida, está claro que o processo pelo qual Florestan recupera o referencial analítico-interpretativo de Marx condiciona numa escala não desprezível a articulação teórica com que o trabalha. Nesse sentido, e como desdobramento de pontuações precedentes, cabe dizer que o objeto que imantou todo o pensamento de Florestan — a contrarrevolução (burguesa) — direcionou a sua apreensão e recriação do legado marxista.
O material histórico-social sobre o qual Florestan laborou excluía liminarmente a possibilidade da “revolução dentro da ordem”.[24] O grau de subalternidade das burguesias periféricas, determinado pela sua associação dependente ao imperialismo, retirando-lhes quaisquer veleidades “heróicas” e inviabilizando, nos seus espaços nacionais, os processos de revoluções democráticas de corte “clássico" — esta particularidade, que barbariza a emergência e a consolidação da dominação burguesa no capitalismo dependente, responde pelo fato de a revolução proletária configurar-se como resolução “contra a ordem”.[25] É a natureza da (contra)revolução burguesa que impõe à revolução proletária uma andamento em que ela deve solucionar as tarefas que lhe são inerentes e aquelas que, na órbita da dependência, não podem ser equacionadas pelas burguesias (aliás, mais nativas que nacionais).
Defrontada com esta contextualidade histórica, no interior da qual o movimento social real tem oclusos os condutos pelos quais as contradições econômicas, sociais e políticas poderiam fluir na mediação de redes complexas de agências da sociedade civil, a elaboração de Florestan resgata o referencial marxista nuclearizando a categoria de revolução. Florestan não pensa Marx senão como teórico da revolução. É óbvio que, pela riqueza e abrangência da sua operação teórico-crítica, Florestan não reduz a problemática da revolução a obra marxiana e marxista, nem ignora os rebatimentos setoriais e globais de dimensões específicas da tradição marxista no conjunto dos problemas societários, científicos, culturais etc. Mas, ao seu pensamento, estruturado no desvendamento da contrarrevolução (burguesa), repugna liminarmente qualquer elaboração teórica que descentre a questão da ação política revolucionária (proletária). A recuperação do referencial marxiano e marxista é inteiramente saturada pela recuperação da categoria de revolução: toda articulação teórica de Florestan está cristalizada pela absoluta centralidade conferida à revolução (proletária).
Por isso,a sua interpretação do legado marxiano e marxista tem uma filiação inequívoca: as matrizes preferenciais de Florestan são aquelas que respondem a situações “a quente”, aos momentos de ruptura (logrados e abortados). É assim que ele resgata privilegiadamente os Marx-Engels de 1848-1849, o Marx de 1870-1871 e o Lênin de 1905-1907 e 1917 — embora, na sua exegese teórica, a referencialidade à Alemanha dos junkers e à Rússia da autocracia czarista pesem devidamente. A congruência destes parâmetros com o contexto do objeto histórico enfrentado por Florestan é suficientemente grande para fundar a preferencialidade que lhes confere. Daí a ponderação que os problemas neles contidos ganham na elaboração de Florestan: são, basicamente, os problemas da constituição da consciência de classe revolucionária, da construção da vanguarda (partido) e da galvanização, por ela, da massa proletária. Numa palavra, são os problemas concernentes à constituição do sujeito revolucionário proletário.[26]
A recuperação do legado marxiano e marxista realizada por Florestan, pois, revela um componente digno de nota: construída no processo de reprodução ideal (teórica) da complexa realidade da contrarrevolução (burguesa), num altíssimo nível teórico-crítico, ela conforma uma entonação medularmente política nos desdobramentos da operação heurística. a priorização do político — e, aqui, a carga semântica é estritamente a que remete a Lênin — passa a comandar o marxismo de Florestan.
Evidentemente, a primordialidade do político não se afirma sem outras implicações. De um lado, o marxismo de Florestan não se mostra sensível a acolher a problematização marxiana e marxista que não fere de modo frontal a questão da revolução; há, nele, uma tendência latente a inabilitar os desenvolvimentos da tradição marxista cujo nervo não seja a revolução em ato.[27] De outro, ele se inclina a atribuir um peso muito denso à subjetividade revolucionária,[28] abrindo a via —, que, diga-se de passagem, não franqueia em seus escritos teóricos — para o voluntarismo eticista.[29]
Mas a politização mediante a qual Florestan opera o seu resgate da tradição marxista, fazendo da categoria de revolução aquela que subsume toda a sua organização teórica, não advém de uma idiossincrasia pessoal. Ela se põe como a resposta militante que o pensador socialista revolucionário oferece à dominação burguesa: a autocracia estabelecida por esta não admite outra réplica, senão ao preço da capitulação. Sobretudo na periferia capitalista, essa afirmação teórico-política parece ser uma contribuição essencial para forcejar o parto do sujeito histórico revolucionário proletário —a requisição revolucionária é o fio a que se agarra a consciência teórica que não abre mão da ótica comunista. Aqui, Florestan incorpora a lição de Mariátegui, o fundador do Partido Comunista Peruano, marxista de que ele foi um dos melhores introdutores no Brasil: “A própria palavra revolução, nesta América de pequenas revoluções, presta-se bastante ao equívoco. Temos de reivindicá-la rigorosa e intransigentemente”.[30] Esta reivindicação traveja o universo de Florestan e permeia a sua recuperação de Marx e do marxismo.
Entretanto, a politização necessária (o partidismo lenineano) no plano da elaboração teórica — necessária para assegurar o conteúdo revolucionário e legítima por inferência em face do movimento social real — pode envolver riscos sérios no plano da prática política que a quer atualizar concretamente. São riscos derivados da eventual supressão das mediações que constituem especificamente a esfera política, supressão tendencial quando se a pretende esgotar na análise teórica. A partir da sua crítica ao capitalismo dependente e à idade do monopólio, por exemplo, Florestan põe em relevo o caráter restritivo da democracia burguesa contemporânea. Vê, corretamente, que, sob o monopólio, ela se transforma numa “democracia armada” (Fernandes, 1985, p. 51). Se, porém, a prática política arrancar desta determinação teórica como princípio, se não jogar com a enorme complexidade dos confrontos sociais, ela pode desembocar numa perigosa subestimação dos canais e institutos legais da intervenção proletária, cravados historicamente no ordenamento burguês pelas lutas populares.[31] No limite, a politização teórica do pensamento de Florestan pode conduzir, paradoxalmente (e, com certeza, no rumo inverso ao desejado por ele), à concreta despolitização da ação política.
V
Espero que tenham ficado sugeridos alguns elementos distintivos da recuperação que Florestan realiza da impostação teórica marxiana e marxista — mais exatamente, elementos para balancear a sua validez e os seus limites, todos vinculados à modalidade através da qual Florestan resgata e recria a impostação de Marx e o marxismo.
Da reprodução teórica, genética e estrutural, do desenvolvimento dependente do capitalismo na periferia, requisito para o esclarecimento da forma específica aí assumida pela revolução burguesa (nesta latitude, antidemocrática e antinacional), Florestan elabora uma concepção da formação social brasileira no interior da qual o movimento (revolucionário) que derrói as bases políticas da dominação autocrático-burguesa já aciona os vetores que, ao colocá-la em questão, ferem o ordenamento capitalista como tal. A impostação da tradição marxista que se restaura nesta operação crítico-analítica confere especial relevo às determinações teóricas que reproduzem a totalização histórico-social em curso, salientando sobremaneira aquelas que sinalizam a emergência do projeto societário da massa proletária.
A interpretação do marxismo daí extraída é congenial ao processo histórico-social que Florestan desentranha por sob as suas manifestações empíricas imediatas. Ela responde às necessidades de “acelerar o tempo histórico” que constitui o espaço para a maturação do sujeito revolucionário latino-americano, particularmente brasileiro. Toda a sua articulação está subordinada à categoria de revolução como processo atual, mas ainda e também à sua demanda ideal dinamizada por uma vontade teórica que quer inscrever-se no movimento social real. É, em última instância, uma interpretação que busca calibrar a impostação marxiana e marxista à natureza do seu objeto e ao seu objetivo; interpretação fortemente datada, vincada pelo ciclo da contrarrevolução (burguesa) — uma interpretação que quer responder ao Brasil do último terço do século XX.
É evidente que esta calibragem deve ser apreciada segundo a sua contextualidade. Tudo indica que, desbordadas as margens deste contexto histórico-social particular, a sua aptidão para apanhar processos societários diferenciais se revelará limitada. Por outra parte, como toda construção teórica macroscópica, ela pode conter riscos reducionistas se transladada à esfera política sem deixar afirmado e transparente o campo de possibilidades e mediações que é específico desta esfera.
Este complexo de questões, visceralmente problemático, precipita-se no clímax a que Florestan chega ao recusar o estatuto (tradicional) de protagonista especializado a pensar profissionalmente o movimento social real, ator social que gravita num terreno balizado pela divisão social do trabalho.
A questão central, no momento, vem a ser a difusão da doutrina socialista entre os trabalhadores, do campo e da cidade [...] — do socialismo revolucionário e não da variante burguesa ou pequeno-burguesa do socialismo (Fernandes, 1980a, p. 39).
Florestan escreveu estas palavras em 1980, mas parece-me legítimo considerar o núcleo da ideia aí contida como a pauta programática que ele vem implementando desde a segunda metade dos anos 1970, no que chamei de pedagogia socialista. E esta pauta, creio-a o centro que energiza o desempenho intelectual e cívico do último Florestan — penso estar longe do exagero se afirmo que ela dá forma e conteúdo, função e sentido ao seu projeto pessoal.
Não se trata, como poderia parecer à primeira vista, de uma tarefa arrogada de um ponto de vista doutrinário ou milenarista — Florestan sabe que “o socialismo revolucionário não gera milagres” (Fernandes, 1979a, p. 14). Trata-se, antes da convicção de que, “sem a conquista da maturidade política pelas classes trabalhadoras”, sem a “socialização socialista dos quadros, das bases e das massas" (Fernandes, 1980a, p. 25), o projeto socialista revolucionário é inviável. Nessa pauta, o que Florestan visa é o que recorrentemente denomina de “ótica comunista”: a contínua e constante clarificação das condições reais das lutas de classes, a definição dos interesses estratégicos da classe revolucionária, a projeção e a prospecção teóricas das alternativas em jogo etc. Vale dizer: a atualização da consciência de classe revolucionária.
Assumindo militantemente essa pedagogia socialista, Florestan completa o circuito aberto pela rotação que redundou na sua recuperação de Marx e do marxismo: o direcionamento das inferências da análise teórico-crítica para a ação política.
Referindo a peculiar posição de Florestan naquela “família intelectual" acentuei que ela se devia à imbricação da sua opção política no seu processo de produção teórica. Agora, a peculiaridade surge em toda a sua nitidez: como passo orgânico derivado das suas conclusões crítico-analíticas, Florestan avança para a militância política mediante o exercício da pedagogia socialista. Essa mediação suporta uma tensa tentativa de vincular reflexão teórica com intervenção prático-imediata, mantendo íntegros, porém, os polos da teoria e da militância. O pedagogo socialista não abre mão da condição intelectual (teórica) — esta é ainda mais exigida pela prova da educação política coletiva; mas se redefine enquanto só se realiza na medida em que o pedagogo é também receptor (e coesionador) da experiência coletiva a que se reporta. A pedagogia socialista não funda a consciência revolucionária (desejá-lo seria pretender a substituição da vanguarda, do partido); contudo, desenvolve-a, atualiza-a, potencia-a no seu processamento (e, pois, é parte da ação da vanguarda).
Rigorosamente, a evolução de Florestan, pelas vias que esbocei sumariamente, culmina no ponto em que ele investe na pedagogia socialista e se põe como tribuno do povo, que, segundo o ideal lenineano, é capaz de
reagir
contra toda manifestação de arbitrariedade e de opressão, onde quer
quer se produza e qualquer que seja a camada ou classe social atingida;
que saiba sintetizar todos estes fatos para traçar um quadro de conjunto
da brutalidade policial e da exploração capitalista; que saiba
aproveitar o mais pequeno pormenor para expor perante todos as suas convicções socialistas e as suas reivindicações democráticas, para explicar a todos e a cada um o alcance histórico-universal da luta emancipadora do proletariado (Lênin, 1977, p. 136).
Ao cabo de um itinerário intelectual que o colocou como o mais significativo pensador da sua geração, não creio que se possa fazer mais justiça a Florestan do que pôr em destaque a sua plena identificação com o tribuno do povo.
= = =
Notas:
[1] Veja-se, por exemplo, dentre outras, a entrevista que concedeu à equipe de Nova Escrita Ensaio (São Paulo, ano IV, nº 8, janeiro de 1981, pp. 11-39).= = =
[2] Examina-se, por exemplo, o tratamento de Marx em textos rigorosamente acadêmicos como Ensaios de sociologia geral e aplicada e Fundamentos empíricos da investigação sociológica (Fernandes, 1962 e 1967).
[3] Dos anos 1940 à segunda metade da década e de 60, não obstante as suas incursões pela Etnologia e pela Antropologia, Florestan perfilou-se basicamente como sociólogo. Recorde-se que ele se graduou em Ciências Sociais em 1944, tornou-se mestre em Antropologia em 1947 e doutor em Sociologia em 1951.
[4] Só isto revela que o Florestan rigorosamente acadêmico coonestou qualquer intenção de uma “Sociologia pura” — na sua ótica, o saber esteve vinculado ao agir. Não por acaso, Ianni (1986, p. 15) insiste em que Florestan “é o fundador da Sociologia crítica no Brasil”.
[5] São conhecidas as reações a essa exigência — recorde-se a polêmica iniciada por Guerreiro Ramos, ainda em meados dos anos 1950.
[6] Relevo e natureza substancialmente repensados muito ulteriormente (Fernandes, 1980), onde, porém, a ultrapassagem da “ciência concreta rigorosamente especializada” aparece em formulações ainda problemáticas.
[7] Em 1978, num ato de exilados brasileiros radicados em Lisboa, encontrei patriotas portugueses e espanhóis que, emocionados, recordavam-se do apoio que Florestan lhes propiciara em São Paulo, quando Salazar e Franco pareciam eternos.
[8] Sobre a diferenciada posição do nosso autor em face da questão das “reformas de base”, cf. Fernandes (1962).
[9] A atividade de Florestan na imprensa não me parece infirmar essa pontuação.
[10] E se tratava, é bom lembrar, de um limite baixo, num país praticamente sem tradição universitária e onde os muros da academia se punham como barreiras de defesa dos privilégios e da cultura a eles relacionada.
[11] Não posso me deter aqui na (importante) questão da superação dos limites sociológicos em Florestan. Quero só salientar que, ao fim dos anos 1960, o seu trabalho analítico-interpretativo muda estruturalmente: não é só o leque das suas categorias e procedimentos que se amplia e diversifica — eles são refundidos e reorientados, com o movimento do capital agora colocado no centro do campo de análise. Penso que esse trânsito a um novo padrão heurístico, a que retornarei adiante, é apreensível in statu nascendi em Sociedades de classes e subdesenvolvimento e Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, adquirindo nitidez em A revolução burguesa no Brasil (cf. Fernandes, 1968, 1973 e 1975). Quanto ao fato de o próprio Florestan continuar caracterizando a natureza do seu trabalho como “interpretação sociológica”, isto em nada afeta essa notação — afinal, como dizia Marx, “não o sabem, porém o fazem”.
[12] Julgo mesmo que é só a partir da inflexão realizada por essa época que Florestan trava um conhecimento sistemático com a obra de Lênin. Aspecto que me parece curioso de notar é que Florestan — que não teve vinculações com o que correntemente se denomina stalinismo — não põe em dúvida a universalidade, tal como situada pela escolástica marxista, da contribuição lenineana ao legado marxiano; elel endossa a fórmula, de clara extração stalinista, segundo a qual “o leninismo é o marxismo da época do imperialismo e da revolução proletária” e opera sem mais com a noção de “marxismo-leninismo” (como se vê na sua “Introdução” ao volume Lênin/Política da coleção “Grandes Cientistas Sociais"; cf. Lênin, 1978b). Num texto menor, mas da mesma época, ele não vacila em equalizar socialismo revolucionário e marxismo-leninismo (cf. Fernandes, 1980a, p. 99-102).
[13] O discurso teórico de Florestan adquire — salvo melhor juízo, pela primeira vez — um pathos que sinaliza eloquentemente essa mutação. Em certas páginas de A revolução burguesa no Brasil perpassa um sopro de indignação épica (a que é alheia qualquer retórica) cujo tônus radica na paixão que satura o analista pela plenitude com que reproduz teoricamente o seu objeto.
[14] Ianni desenvolveu a noção de “família intelectual” especialmente na conferência que pronunciou, em novembro de 1985, na União Brasileira de Escritores (São Paulo), no decurso da "Semana Astrojildo Pereira".
[15] A solidão política de Florestan — não obstante a sua adesão ao Partido dos Trabalhadores — parece-me ser um traço significativo da sua evolução.
[16] Daí, aliás, a inexistência, no Florestan desse período, de qualquer entonação epistemologista ou metodologista — a correta solução da análise concreta expurga, sempre, as especulações metodologistas ou epistemologistas.
[17] Não é este o lugar para avaliar A revolução burguesa no Brasil. Como obra ciclópica que é, não passa sem problemas, especialmente no tocante às relações entre o Estado autocrático-burguês constituído e a sociedade civil, bem como às mediações próprias à esfera política. Mas as minhas reservas a esse livro seminal são perfunctórias — a sua riqueza e a sua profundidade estão a reclamar uma exegese cuidadosa.
[18] Reaproveitamento que aparece, entre outras passagens, na análise do “imigrante”.
[19] Valeria a pena, num exame cuidadoso dessa opus magnum, detectar o tácito diálogo com Caio Prado Jr.
[20] Nesse terreno, é notável a sua contribuição à dinamização da produção editorial, especialmente através das chancelas Hucitec e Ática — nesta última, avulta o empreendimento da coleção “Grandes Cientistas Sociais”. Em numerosos livros que edita, de outros autores, as notas, prefácios e introduções que redige dão conta dessa discussão teórica.
[21] Não cabe aqui o trato das intervenções mais significativas de Florestan neste terreno; mas é de valor notar que elas não têm um significado apenas conjuntural. Recorde-se, por exemplo, que, quando o cretinismo conceptual do “autoritarismo” floresceu nessa “cultura de esquerda”, ele retrucou com os seus Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo (Fernandes, 1979).
[22] O miolo das suas concepções pode ser encontrado na seguinte pontuação: “O 'socialismo democrático' não constitui um instrumento do proletariado e da revolução socialista, Ele constitui a nova versão do oportunismo da social-democracia e a última barreira de defesa do sistema capitalista” (Fernandes, 1980a, p. 4). E o gume da sua polêmica também se dirige para o que ele considera “a socialdemocratização de alguns partidos comunistas contemporâneos” (Fernandes, 1985, p. 67).
[23] As páginas que Florestan dedica à saga cubana são eloquentes a esse respeito — Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana (Fernandes, 1979a), seu ensaio mais denso deste período, é um admirável esforço para elaborar todo um ciclo histórico a partir dessa categoria.
[24] São inúmeras, em seus textos, as passagens em que Florestan tematiza a polaridade “revolução dentro da ordem”/“revolução contra a ordem” (burguesa). De forma didática, mas nem por isso menos rigorosa, essas determinações aparecem no importante opúsculo O que é revolução (Fernandes, 1985).
[25] A imbricação da “revolução dentro da ordem” com a “revolução contra a ordem”, todavia, não está isenta de problemas; e seus dilemas não são escamoteados por Florestan — detém-se sobre eles na introdução ao citado Brasil: em compasso de espera, onde escreve: “Em outras palavras, “a 'revolução dentro da ordem' deslocou-se para o âmbito da ação política organizada das classes trabalhadoras e das massas populares. [...] Esse deslocamento tornou ainda mais díficil a preparação e o desencadeamento da 'revolução contra a ordem'” (Fernandes, 1980a, p. 23).
[26] Aqui, a síntese mais castigada do seu pensamento encontra-se em Fernandes (1985).
[27] Toda a problemática posta, por exemplo, pelo chamado marxismo ocidental encontra pouquíssima ressonância na ensaística de Florestan — exceto, e não casualmente, o Lukács de 1923 e, lateralmente, Gramsci.
[28] Vejam-se, por exemplo, as suas “introduções” aos volumes dedicados a Lênin (1978b) e a Marx-Engels (1983) na coleção “Grandes Cientistas Sociais”.
[29] Florestan não é complacente com o infantilismo de esquerda, o radicalismo verbal e o obreirismo, bem como com o espontaneísmo (cf., por exemplo, Fernandes, 1980a, p. 25-27). Escreve sem ambiguidade: “As situações revolucionárias não se criam ao sabor da vontade (ou, como diria Lênin, não se produzem por encomenda)” (Fernandes, 1985, p. 27) — mas o voluntarismo eticista pode, parece-me, nutrir-se de algumas de suas pontuações (encontráveis, por exemplo, no mesmo texto, Fernandes, 1985, p. 52-70).
[30] O texto em que comparecem essas duas frases é o de um editorial de Amauta (Lima, ano II, nº 17, setembro de 1928). Recorde-se que, além de ter incluído Mariátegui na coleção “Grandes Cientistas Sociais”, Florestan prefaciou a única obra do peruano até hoje integralmente vertida ao português (Mariátegui, 1975).
[31] No plano teórico, Florestan não despreza tais institutos; mas a direção geral do seu pensamento político nem sempre explora todas s implicações desses mecanismos reais.
NETTO, J. P. “Florestan Fernandes: uma recuperação marxista da categoria ʽrevoluçãoʼ”. In: Marxismo impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004, p. 205-210.
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