quinta-feira, 23 de julho de 2020

Tönnies e o nascimento da sociologia alemã


por Ranieri Carli

Em terras alemãs, os eventos ganharam um rumo particular. Como a burguesia toma o poder político baixo ao coturno prussiano de Bismarck, “a sociologia alemã nasce, pois, dentro dos marcos da apologética derivada desta transição” (Lukács, 1968: 474). Isso implica que está posta para a sociologia alemã uma série de tarefas distintas daquelas que se observam na França e na Inglaterra. Lukács diz que a apologia ao Estado prussiano fazia com que os problemas da vida social fossem identificados como meras questões jurídicas de Estado; bastava a intervenção do Estado (diga-se, de Bismarck) para que se decidisse o assunto.
 
Esta era a ideia do historiador e político Heinrich Treitschke, que predominava nos primórdios da sociologia alemã (cf. Lukács, 1968: 474). Efetivamente, Treitschke defendia que “o Estado demanda obediência: suas leis devem ser mantidas, forçosamente ou não. É um passo adiante quando a silenciosa obediência dos cidadãos torna-se um consenso racional interno, mas este consenso não é absolutamente necessário” (s/d: 12). O consenso liberal não é necessário; basta a intercessão do Estado. Um pouco depois no texto, o ideólogo de Bismarck assevera que “o Estado diz: para mim, é indiferente o que pensas sobre o assunto, mas deves obedecer” (Treitschke, idem: 13). Exige-se, portanto, a obediência servil ao Estado imperialista. Treitschke estava longe de ser um liberal democrata.

Tudo se submetia ao Estado prussiano: esta era a ideia hegemônica naqueles anos, conforme os estudos de Lukács. Por esta razão, a sociologia ficava momentaneamente sem objeto na Alemanha. O que poderia ser enfocado pela sociologia, na verdade, resolvia-se lançando mão da teoria do direito e da política.

A situação muda de figura quando há o florescimento das lutas de classes entre burguesia e operariado; “nesta nova situação, um grupo de economistas alemães (Brentano, Schmoller, Wagner e outros) trata de estender os domínios da economia nacional até convertê-la em uma ciência da sociedade” (Lukács, 1968: 474). O operariado torna-se força ativa no palco político da Alemanha; organiza-se no partido social-democrata. Essa nova objetividade histórica é a demanda à qual a sociologia virá a conceder respostas. A ciência burguesa volta seu foco para o movimento do trabalho; reage a ele. Para que não fiquemos no purificado plano das ideias e, assim, mistificarmos todo o processo, deve-se dar a devida atenção às particularidades históricas da Alemanha de então:uma sociologia fazia-se necessária para dar conta da “questão social”, tratando-a empiricamente, autonomamente, sem se reportar às contradições econômicas, como designa o método das ciências vulgares.

O positivismo não influencia esta sociologia produzida na Alemanha, pelo menos não em sua versão clássica comteana. Dada a herança de Kant entre os teóricos alemães, quando aspectos positivistas transpõem os limites da fronteira com a França, eles são filtrados por um subjetivismo kantiano. O pensamento alemão sempre manteve uma atitude de reserva ao positivismo clássico. E, no momento em que nasce a sociologia, os mandarins alemães já estão parcialmente imunizados contra a cientificidade naturalista da escola de Comte, Spencer e Durkheim. Produz-se, na verdade, um positivismo peculiar à Alemanha, de tipo neokantiano, que geralmente mantém a rígida separação entre ser e dever ser e a fragmentação entre as disciplinas, ainda que não conceba as sociedades enquanto um todo orgânico.
 
Lukács estabelece a obra de Ferdinand Tönnies enquanto o grande momento da nascente sociologia alemã. Em 1887, Tönnies publica Comunidade e sociedade. Essa é uma amostra de como a sociologia alemã elabora o positivismo à sua maneira. O sociólogo distingue entre comunidade e sociedade fundamentando-se em categorias das ciências naturais: a primeira seria um corpo cujos membros estariam agregados de forma homogênea, enquanto a segunda seria uma formação mecânica, o que pressupõe a existência plural de centros de força (cf. Tönnies, 1947: 19). A sociedade viria substituir cronologicamente a comunidade; é a leitura que Tönnies fazia do surgimento da sociedade burguesa à época de Comunidade e sociedade.

Não é ocioso lembrar que, concomitantemente, Durkheim estabelecia distinção similar no livro Divisão do trabalho social, também se valendo dos usuais paralelos com as ciências da natureza.

A particularidade de Tönnies reside no fato de que a sua recepção de Marx não é de rejeição. As teorias de O capital sobre a transição da simples cooperação à grande indústria são qualificadas como “magistral análise” (Tönnies, 1947: 97). Por certo, Marx servia até certo ponto para a crítica romântica e reformadora que o sociólogo pretendia fazer ao capital. Para Tönnies, a sociedade é uma “construção artificial” que dista longinquamente da “unidade perfeita” de uma autêntica comunidade; o romantismo está posto nestes termos: “comunidade é a vida em comum duradoura e autêntica; sociedade é só uma vida em comum passageira e aparente” (Tönnies, idem: 21). A fim de enaltecer o “espírito de união” perdido com o advento da sociedade, o sociólogo recorria a Marx, muito embora subtraísse o aspecto revolucionário da crítica marxiana à economia política.

A aceitação de um certo Marx particulariza Tönnies em respeito a seus contemporâneos. Tönnies até mesmo retém a teoria do valor-trabalho: “coisas são consideradas iguais na medida em que cada objeto ou cada quantidade de objeto detém uma certa quantidade de trabalho necessário” (1947: 70). O autor de Comunidade e sociedade chega a defender Marx diante das críticas da escola austríaca de economia (cf. Tönnies, idem: 115, 116). Apesar de delimitar o valor-trabalho à sociedade burguesa (quando em verdade corresponde à totalidade extensiva da história), não há como não notar uma coragem em Tönnies no instante em que afirma o trabalho como medida do valor, em plena vigência do estágio monopolista do capital. Enquanto seus contemporâneos estão apartando da teoria os inconvenientes ao capital, é possível de se ler na obra de Tönnies que a produção de valores está a cargo da classe trabalhadora; trata-se de um verdadeiro triunfo da objetividade, embora Lukács não lhe dê o devido crédito[1].

Dada a sua condição de classe, pode-se supor que Tönnies não leve às últimas consequências a constatação de que a classe produtora é o operariado. A sua crítica ao capital retira suas armas da cultura [Kulturkritik]; é uma crítica à hostilidade da economia capitalista às formas elevadas de objetivação (arte, filosofia).

Ao longo de Comunidade e sociedade, Tönnies presta tratamentos diferentes às duas formas societárias: ao analisar a comunidade, o sociólogo privilegia os aspectos culturais, instituições como o matrimônio, a família, a autoridade política, a nobreza de sangue, a honra, etc; quando o assunto é a sociedade, põe-se a discorrer sobre a economia, a divisão do trabalho, a produção de valores, a mercantilização da vida social, o dinheiro, o lucro, a desapropriação dos meios de produção dos trabalhadores, a mais-valia, etc. Parece que o momento econômico vem a nascer com a sociedade burguesa. Não são extraídas maiores determinações da relação de exploração entre o senhor feudal e o servo da gleba; não se leva em conta a economia quando se aborda a comunidade e não se considera acultura na análise da sociedade. Tönnies não é neutro na escolha do método: de um lado,fazem-se um elogio à cultura comunitária e, de outro, um ato de repúdio à economia da sociedade.

No livro de 1887, o aspecto contraditório da sociedade é ressalvado para ser e afirmar a “unidade perfeita”, o “consenso”, a “reciprocidade de relações” da antiga comunidade. Biógrafo de Hobbes, Tönnies retira do iluminista inglês a noção de que em sociedade o homem é o lobo do homem; de que os indivíduos agem conforme seus interesses mais particulares, mais imediatos na formação societária. Enquanto que em sociedade, “cada qual está para si somente e em estado de tensão contra todos os demais” (Tönnies, 1947: 65), em comunidade, “consenso e concordância são também uma mesma coisa: vontade comunal em suas formas elementares; como consenso em cada uma de suas relações e efeitos, como concordância em sua força e natureza total” (Tönnies, idem: 41).

Já em Princípios de sociologia, de 1931, Tönnies fala não em “sociedade” mas sim em sociedade burguesa; afinal, como diria Aristóteles, o sociólogo dá o nome certo à coisa. Apesar de proporcionar algumas novidades em face de outros textos, nos Princípios de sociologia, o elemento romântico não se perde na caracterização da burguesia:
 
De todos os elementos favorecidos, em conexão parcial com os subsistentes do estamento senhorial, forma-se uma “classe” dominante, que se diferencia do estamento senhorial por não ser fechada por natureza, senão aberta, e por que se destaca menos da grande massa do povo por signos exteriores como nome, título e tradições (Tönnies, 1946: 109).

Entre todos os aspectos que poderiam diferenciar a burguesia dos senhores feudais, Tönnies optou pelo prosaísmo da classe dominante moderna. Os burgueses não detêm o nome, o título e as tradições que os diferenciariam da grande massa proletária. A burguesia não porta a “coloração de nobreza”; ela é passível de se confundir com a massa do povo. Ainda que Tönnies não caia na franca reação, é indubitável que um reacionário convicto como Nietzsche corroboraria com boa parte de tais ideias esboçadas pelo sociólogo.

A maneira de Tönnies conduzir a crítica à burguesia é cheia de particularidades (que não foram deixadas de lado na maturidade dos Princípios de sociologia). O seu método termina por conceber as formações sociais de modo supra-histórico: nas tipologias da sociedade não se compactuam elementos que pertencem às comunidades e vice-versa. O sociólogo compõe assim dois imensos blocos históricos, opostos rigidamente, a saber, o capitalismo e o pré-capitalismo.

Lukács analisa os resultados que decorrem deste tipo de destruição da razão:
Esta exaltação anti-histórica de conceitos derivados, por sua origem, da análise concreta de formações sociais concretas, não só dilui estes conceitos..., senão quer e força, ao mesmo tempo, seu caráter anticapitalista romântico. A “comunidade” se converte assim na categoria que abarca o campo de todo o pré-capitalista, na glorificação dos estados “orgânicos” primitivos e, ao mesmo tempo, na consigna contra a ação mecanizadora e anticultural do capitalismo (1968: 483).
De um lado, a comunidade a abarcar o todo do passado pré-capitalista — a despeito das particularidades sócio-históricas; de outro, a sociedade, que representa a emergência da sociabilidade burguesa. É uma antinomia lógica em que A não detém determinações de B. Os dois conceitos estão opostos entre si, sem mediações; não se tomam em conta aspectos de transição histórica entre as duas modalidades societárias; onde se inicia uma delas, termina a outra.

Tönnies era um romântico resignado; olhava para a história passada com saudades no mesmo instante em que acreditava que a sociedade burguesa e a substituição das comunidades eram inevitáveis:
Nesse aspecto, foi influenciado por Marx. Não há dúvida, em sua mente, de que o capitalismo era a principal força que levaria da comunidade à sociedade, do comunismo primitivo ao socialismo moderno. A agricultura, a guilda da cidade pequena, as tradições legais comunais e mesmo a própria família tinham de ser sacrificadas para que houvesse mercados de âmbito mundial, padrões racionais de organização social, produção em massa e um exército de trabalhadores sem raízes a ser explorados nas fábricas. Não tinha a menor dúvida sobre isso e não podia tolerar frases “idealistas” destinadas a disfarçar essas realidades (Ringer, 2000:163).
É verdade que Tönnies qualificava como idealismos “condenados ao fracasso” quaisquer empenhos em reconstruir as relações comunitárias do modo como estavam postas no antigo regime. A restauração da “unidade perfeita” conduziria a uma outra modalidade de cooperação distinta das medievais e antigas.

Há uma importante passagem dos Princípios de sociologia em que Tönnies clarifica a sua posição em face das lutas de classes entre burguesia e proletariado; declara que não se retorna para o passado, muito embora lamente o espírito cooperativo perdido na modernidade. Por isso, põe-se a favor da luta pelo “novo”; põe-se ao lado do “novo e jovem” representado pelos trabalhadores e contra o velho burguês, sob a condição que o novo oriente-se para a constituição de um re-atualizado espírito de unidade, de cooperação. Tönnies realmente não leva às últimas consequências a constatação de que a produção de valores está a cargo da classe trabalhadora. Escutemos de sua própria voz:
O novo e o jovem [os trabalhadores] constituem precisamente um esforço em direção à comunidade, representando concretamente a tendência, condenada sempre ao fracasso, de restabelecer circunstâncias passadas e mortas; porém também representam mais frequentemente e com melhores perspectivas de êxito uma tendência em direção ao estabelecimento de uma nova base econômica que quer diferenciar-se por princípio da capitalista e societária — mesmo quando tenha igualmente necessidade do capital. Neste sentido, são de grande importância, antes de tudo, as tão reiteradamente mencionadas organizações cooperativas, as quais partem nada menos que do princípio que faz da produção de valores de uso um objeto imediato do trabalho societário; é dizer, de um princípio que afirma a guerra ao valor de troca, cuja generalização devem-se os enormes êxitos do capitalismo, e que trata de conciliar..., pelo menos, o capital e o trabalho, procurando que o próprio trabalho domine e tome em suas mãos o capital em forma de instrumentos que lhe são necessários (Tönnies, 1946: 342,343).
O repúdio ao prosaísmo burguês levou Tönnies a aliar-se ao operariado, o que já era indicado pela sua apropriação da teoria do valor-trabalho. Entretanto, o intento não era a revolução. Tönnies pretendia a reforma, a conciliação entre trabalho e capital. A restauração da “unidade perfeita” da comunidade não implica a volta ao passado, senão a reforma do presente rumo à constituição de cooperativas; nelas, as características mais lesivas da divisão capitalista do trabalho seriam abrandadas.

Não existe, portanto, nenhum paradoxo entre a tomada de partido favorável à classe trabalhadora e a crítica de caráter romântico à sociedade burguesa; era um romantismo que se desvinculava da restauração reacionária. O novo e o jovem da luta proletária significam o estabelecimento contemporâneo da comunhão corrompida pela sociedade burguesa. Tönnies resigna-se com a instauração da sociedade burguesa e procura amenizá-la com as reformas que não transbordem para além das fronteiras do capital.

Os problemas aumentam quando Tönnies associa às formas societárias duas noções de “vontade” — o que Ringer chamará de “dicotomia fundamental” da obra de Tönnies (cf. Ringer, 2000: 160). Tönnies pretende estabelecer a seguinte diferença: uma espécie de “vontade essencial” fez vir ao mundo as comunidades e toda a sua coesão interna, enquanto que uma “vontade arbitrária” produziu a sociedade desagregadora (cf. Tönnies. 1947: 119). De acordo com o sociólogo, “a comunidade parte da unidade perfeita da vontade humana” (1947: 25). Tönnies hipertrofia a subjetividade criadora e atribui a ela o papel instituidor da dinâmica social. O sujeito torna-se uma entidade supra-histórica que funda as formações societárias com a sua vontade[2].

O contraditório de sua resignação romântica é realçado tendo em vista que Tönnies dava um grande relevo à “vontade subjetiva”. Se bastasse que os indivíduos desejem a restauração do sentimento comunitário, não haveria por que a resignação. Todavia, o estudo do movimento do capital ensinou a Tönnies que vontade não é onisciente ou onipotente; foi obrigado a constatar que a dinâmica social é muito mais abrangente do que os indivíduos isoladamente, do que as vontades e os interesses particulares do sujeito. Ainda que quisesse, a “vontade essencial” por si só não traria de volta o espírito comunitário; não foi por outra razão que Tönnies engajou-se na luta política pelas reformas que conciliassem capital e trabalho.

Tönnies exerceria uma grande influência no desenvolvimento da sociologia alemã. A sua crítica romântica ao capitalismo circunscreveu o terreno em que os sociólogos posteriores caminharam.

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Notas:
[1] Lukács comenta que Tönnies entendia como similares as versões de Marx, Ricardo e Rodbertus para a teoria do valor-trabalho (cf. 1968: 478). Isso é verdade, mas, sob nossa ótica, esse fato não reduz a importância do movimento de Tönnies no sentido de apreender as contradições da realidade burguesa; a confusão de Marx com Ricardo e Rodbertus não suprime dos seus textos a teoria valor-trabalho; ela continua lá. Entretanto, Lukács prefere desmerecer a enaltecer a tentativa de Tönnies em se apropriar de elementos da teoria marxista. A destruição da razão foi escrita em um momento conturbado, em plena guerra fria, e uma concessão desse porte às ciências burguesas talvez fosse impensável.
[2] “O sujeito de ambas [a vontade arbitrária e a essencial] põe em movimento o corpo (de outra sorte representável como desprovido de movimento) por meio de um impulso exterior. Este sujeito é uma abstração. É o ‘eu’ humano, concebido como desprendido de todas qualidades e como essencialmente cognoscente, como se representando as consequências (prováveis ou seguras) de possíveis efeitos que partam dele mesmo e medindo-as por um resultado final, cujas ideias se fixam como norma para separar esses possíveis efeitos, ordená-los e dispô-los para que se convertam em realidade no futuro” (Tönnies: 1947:121). O sujeito de Tönnies é a descrição de um ente divino, onipotente e onisciente.
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CARLI, R. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 61-68.
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