por Décio Saes
Cientistas políticos neoliberais sugeriram, inúmeras vezes, que a teoria clássica das elites — aquela presente nos textos de Mosca, Pareto, Michels e Sorel — está bem morta e enterrada; isto é, exerce uma influência muito reduzida no terreno da análise dos processos políticos contemporâneos. Ora, um exame panorâmico da Ciência Política contemporânea desmente essa afirmação. Ou seja: elementos nucleares da teoria clássica das elites (algo mais que o uso isolado e “pragmático” da noção de “elite”) inspiraram análises de processo político típicas do liberalismo conservador, como as de Karl Mannheim na década de 1930 (Homem e sociedade, Ensaios de sociologia da cultura), Joseph Schumpeter na década de 1940 (Capitalismo, socialismo e democracia), Raymond Aron na década de 1950 (Luta de classes; Democracia e totalitarismo) e Robert Dahl na década de 1960 (A moderna análise política).
Se isso é correto, como se explica a tendência de muitos cientistas políticos neoliberais a minimizar a influência exercida pela teoria clássica das elites sobre a análise política contemporânea? A explicação para essa tendência é mais política que científica: pode parecer incômodo aos cientistas políticos neoliberais da atualidade o dever intelectual de indicar o parentesco teórico entre o liberalismo conservador contemporâneo (a que eles próprios se filiam) e uma escola de pensamento cujos integrantes foram não só críticos do regime democrático como também simpatizantes (ainda que temporários) do fascismo italiano.
Já os pesquisadores situados fora do campo ideológico neoliberal e consequentemente imunes aos preconceitos políticos próprios dessa posição estão aptos a detectar a continuidade teórica existente entre a Escola maquiavélica (Mosca, Pareto, Michels e Sorel) e o liberalismo conservador da atualidade. E, mais do que isso, tais pesquisadores têm condições de avaliar a real importância da teoria da elites na Ciência Política contemporânea, já que as declarações de paternidade e filiação intelectuais, feitas nesse terreno, não lhes trazem embaraços políticos análogos aqueles que poderiam ser suscitados nos seus colegas neoliberais. Finalmente: impõe-se que esses pesquisadores, reconhecendo a relevância dos problemas formula dos pela Teoria das Elites, trabalhem decididamente na crítica dessa teoria, o que implica não só expor os seus desajustes internos como também propor um modelo alternativo de análise dos processos políticos contemporâneos. Esse modelo, lembre-se, será proposto por pesquisadores que, não obstante as suas intenções críticas, reconhecem a relevância da Teoria das Elites. Ele não pode, portanto, consistir numa mera volta a um padrão de análise política anterior à emergência dessa corrente teórica; ele deverá conter, na verdade, soluções para os problemas formulados pela Teoria das Elites, bem como respostas para os desafios lançados pelos seus adeptos, maquiavélicos ou liberal-conservadores.
I. Uma reconstituição da Teoria das Elites
A Teoria das Elites deve ser estudada enquanto sistema concatenado de conceitos e, portanto, enquanto sistema de relações entre conceitos. Isso significa que tal teoria não se reduz ao mero emprego da expressão “elite”, a que recorrem, frequentemente por pura inadvertência teórica, muitos cientistas políticos que não se identificam com o conjunto desse sistema teórico. Mas tal sistema não se “realiza” do mesmo modo em todos os autores que o adotam como modelo de análise política. Em primeiro lugar, os diferentes autores não enfatizam igualmente, nas suas análises políticas, os diversos conceitos e relações entre conceitos; alguns desses elementos podem predominar, no plano da ex- posição, sobre outros, o que não significa que estes últimos estejam ausentes. Em segundo lugar, certos elementos desse sistema teórico se apresentam, nalguns autores, em estado puramente virtual, enquanto que outros elementos se atualizam plenamente. Essa coexistência de “virtual” e “atual” é possível, desde que não intervenham na análise política elementos que, pertencendo a um sistema teórico diferente, ocupem neste um lugar homólogo àquele ocupado pelos elementos “virtuais” na Teoria das Elites; caso essa intervenção ocorra, a própria virtualidade de alguns elementos estará ameaçada. Em terceiro lugar, existe sempre a possibilidade de o modelo de análise política, proposto por algum autor, ser internamente contraditório, filiando-se simultaneamente a sistemas diferentes. Nesse caso, impõe-se verificar — o que é, reconheça-se, uma tarefa bastante complexa — qual sistema teórico predomina dentro do modelo, relegando o outro sistema à condição de elemento subordinado.
Isso significa que há textos predominantemente filiados à Teoria das Elites; nesses textos, os elementos provenientes de outros sistemas teóricos são globalmente “sufocados” — sem que isso elimine as contradições localizadas — pelos conceitos e relações entre conceitos que integram a Teoria das Elites.
Essas observações preliminares já indicam nossa perspectiva de trabalho. Não pretendemos, aqui, reproduzir o pensamento de tal ou qual autor, convencionalmente reputa- do membro da Escola das Elites. Buscaremos, isto sim, reconstituir a Teoria das Elites como sistema concatenado de conceitos e de relações entre conceitos que funciona como modelo de análise dos processos políticos contemporâneos. Essa reconstituição abre o caminho para uma avaliação, em novos termos, do pensamento dos autores maquiavélicos ou dos autores liberal-conservadores do século XX. O objetivo de tal avaliação será a caracterização do modo de filiação de cada autor à Teoria das Elites; e não a fixação do pensamento de um autor particular como o paradigma básico da Teoria das Elites e, a seguir, a mensuração do grau de desvio dos demais pensamentos com relação a esse paradigma.
Comecemos, portanto, o trabalho de reconstituição da Teoria das Elites. O seu conceito central é o de “minoria politicamente ativa”: a minoria de homens que assume, em qualquer espécie de sociedade humana, o controle do processo de tomada das grandes decisões políticas.
Pode-se entender a centralidade do conceito de “minoria politicamente ativa” para a Teoria das Elites quando se percebe que ele está estreitamente ligado a uma tese fundamental acerca da configuração do processo político nas sociedades humanas. Vejamos essa tese: em qualquer espécie de sociedade humana (passada, presente ou futura), uma minoria de homens tende sempre a as- sumir o controle do processo de tomada das grandes decisões políticas. Através dessa tese, a Teoria das Elites define como um fenômeno universal, presente em diferentes épocas históricas e em diferentes espécies de sociedade humana, a dominação política da maioria social pela minoria social. Os procedimentos metodológicos formalmente fixa- dos como caução para essa tese são três: a) a observação histórica; b) o estudo da Psicologia Social com vistas à descoberta de eventuais elementos invariantes —isto é, universais — do comportamento social; c) a combinação de ambos os procedimentos metodológicos.
Uma vez apresentada a tese das “minorias politicamente ativas” como o ponto nuclear da Teoria das Elites, deve-se colocar a seguinte questão: tal tese mantém algum parentesco com a visão marxista dos processos macro-políticos? Essa questão não pode ser evitada, já que a teoria política marxista também sustenta que os processos macro-políticos são monopolizados por uma mino- ria social. Porém, a resposta a essa pergunta só pode ser negativa. O parentesco entre Teoria das Elites e teoria política marxista é apenas longínquo, e não próximo, por duas razões. Em primeiro lugar: enquanto na Teoria das Elites a dominação dos processos macro-políticos por minorias sociais é definida como um fenômeno universal, permanente e eterno, na teoria política marxista a existência de minorias dominantes é encarada como um jato histórico, relacionado com a existência da sociedade de classes (vale dizer: um fato inexistente nas sociedades primitivas e suscetível de ser liquidado na época contemporânea através da implantação do socialismo ou, mais precisamente, através da evolução da sociedade socialista para o comunismo). Em segundo lugar: a própria concepção marxista de “minoria politicamente dominante”, existente apenas nas sociedades de classe, é diferente da concepção elitista de “minoria politicamente ativa”, presente em toda e qualquer sociedade humana. A minoria politicamente dominante numa sociedade de classes — isto é, a classe politicamente dominante —é, segundo a teoria política marxista, a classe dos proprietários dos meios de produção (vale dizer, a classe economicamente dominante). Ora, a Teoria das Elites se configura como uma crítica da correlação marxista entre dominação econômica de classe e exercício de poder político. No terreno da Ciência Política, a Teoria das Elites se delineia como um dispositivo de combate à tese marxista do “caráter cumulativo do poder”: vale dizer, a tese que atribui um caráter cumulativo ao exercício dos poderes econômico e político nas sociedades contemporâneas (de classe). A Teoria das Elites nega, portanto, a ocorrência de qualquer correlação entre exercício do poder econômico e exercício do poder político; bem como entre a situação de classe economicamente dominante e a situação de grupo politicamente dirigente.
É preciso, entretanto, agregar alguns esclarecimentos acerca da crítica elitista à teoria política marxista. A Teoria das Elites não exclui a possibilidade de que, numa sociedade histórica concreta, uma classe economicamente dominante seja, por coincidência, o grupo politicamente dirigente. O que ela exclui é a afirmação de que uma dessas condições (detenção do poder econômico ou, inversamente, do poder político) deriva da posse da outra. Em suma: o que a Teoria das Elites nega não é a possibilidade de coincidência entre dominação econômica e dominação política; e sim, que o exercício de tais poderes tenha um caráter cumulativo na sociedade contemporânea[1].
Registre-se também que a Teoria das Elites não exclui a presença do conceito de classe social, o que ela rejeita é a caracterização de uma correlação invariante entre as condições de classe economicamente superior ou dominante (definida de diferentes modos conforme a escola sociológica) e de grupo politicamente dirigente.
O segundo elemento crucial da Teoria das Elites é o modelo de explicação sociológica subjacente à afirmação da existência universal de “minorias politicamente ativas”, distintas das minorias dominantes detectadas pela teoria política marxista nas sociedades de classe. A rigor, pode-se dizer que tal modelo se decompõe em dois, na medida em que a Teoria das Elites abre duas vias teóricas distintas para a explicação da universalidade das minorias dominantes. De um lado, a Teoria das Elites comporta uma linha de argumentação oriunda da “Sociologia das organizações”: uma minoria social tende, sempre e em qualquer lugar, a governar a maioria social, pura e simplesmente por ser mais organizada que essa maioria; e a minoria social é sempre mais organizada que a maioria social justamente por ser minoria (Mosca, The Ruling Class: “É mais fácil para poucos estar de acordo e agir de modo uniforme que para muitos”). De outro lado, a Teoria das Elites comporta uma linha de argumentação oriunda da “Psicologia de massas” (Sighele, Le Bon, Tarde): em qualquer sociedade humana, a maioria social “massa” — caracteriza-se, no plano da ação coletiva, pela irracionalidade; por isso, ela é incapaz, no plano político, de identificar os seus verdadeiros interesses e de agir racionalmente na defesa dos mesmos. Conclusão: a massa tende inevitavelmente a ser dominada, no plano político, por uma minoria social que monopoliza a “técnica” política; vale dizer, qualidades políticas essenciais — apontadas por Maquiavel em O príncipe — como a sede de poder, a força e a astúcia.
Essas duas linhas de argumentação — a “técnica” (oriunda da “Sociologia das organizações”) e a “filosófica” (oriunda da “Filosofia da história” subjacente à “Psicologia de massas”) — podem ser utilizadas isoladamente; porém, tendem a ser utilizadas simultaneamente. Isso não significa, entretanto, que esses argumentos distintos estejam efetivamente articulados, do ponto de vista teórico, num modelo único de explicação sociológica. A utilização de tais argumentos pode ser simultânea; porém, nesses casos, ela será sempre compartimentada, já que cada um desses argumentos pode ser brandido contra o outro. Exemplificando: se a massa é sempre inconsciente dos seus interesses e incapaz de defendê-los na arena política, a minoria social tenderá em qualquer caso a estabelecer sua dominação política, independentemente de existirem ou não facilidades técnicas na organização política de minorias. Inversamente: se a minoria social está fadada a ser politicamente dominante justamente em razão dessas facilidades técnicas, tanto faz que a massa — isto é, a maioria social — seja politicamente racional ou não; em qualquer caso, ela seria derrotada pelo fator “técnico”, favorável invariavelmente à minoria social.
Vê-se portanto que essas duas vias para a explicação da universalidade das minorias dominantes são contraditórias. Entretanto ambas se filiam legitimamente à Teoria das Elites, na medida em que se configuram como instrumentos — diferenciados, é verdade — de ataque a toda e qualquer teoria materialista dos recursos políticos. O que as afirmações da superioridade organizacional das minorias ou da irracionalidade das massas contestam igualmente é a tese de que os recursos políticos da classe dominante derivam, na sociedade contemporânea (de classe), da posse de recursos econômicos, que se transfiguram naqueles de modo direto ou com a mediação do elemento educacional e cultural. É esta vocação antimaterialista das duas linhas de argumentação que ameniza a contradição em que incorrem muitos textos filiados à Teoria das Elites; na lógica interna do discurso elitista, todos os argumentos são bons para desacreditar qualquer análise sociológica, de cunho efetivamente científico, dos recursos políticos da classe dominante na sociedade contemporânea (de classe).
Neste ponto da exposição, podemos indicar outro elemento central da Teoria das Elites: a crítica da noção de representação política. Nas sociedades contemporâneas, as minorias sociais não se lançam à conquista do poder político na defesa dos interesses da classe economicamente dominante ou do conjunto da sociedade. E, no exercício do poder político, essas minorias agem em função de interesses (como o de preservar o poder político conquistado e as vantagens materiais dele decorrentes) dos seus membros, e não dos interesses de uma classe social determinada ou do “interesse geral da sociedade”. O que move politicamente as minorias sociais é o conhecimento da facilidade de se organizar minorias ou a consciência de sua superioridade política(no plano da vontade de poder, da força e da astúcia) diante das massas; e não a defesa de quaisquer interesses coletivos já constituídos num plano extrapolítico (econômico, cultural etc.). Na Teoria das Elites, portanto, a minoria dominante não representa ninguém; pode-se dizer, na melhor das hipóteses, que ela “representa” a si própria. Nessa medida, os autores que recorrem a noção de “elite política” e ao mesmo tempo postulam a constituição, nas sociedades contemporâneas, de “elites” politicamente representativas com relação à sociedade (é o caso de Maurice Duverger ou de W. G. Runciman) já se situam fora do campo da Teoria das Elites.
Note-se que a Teoria das Elites, ao criticar a problemática da representação política, entra em luta não só com a teoria política marxista como também com o liberalismo clássico. De um lado, a Teoria das Elites rejeita a tese da representatividade de classe da ação política (ponto de partida teórico da análise histórica empreendida por Marx em O dezoito brumário e As lutas de classe na França). De outro lado, ela descarta o ideal do governo representativo, defendido pelo liberalismo clássico. É finalmente curioso sublinhar que, na crítica da noção de representação política, a Teoria das Elites se aproxima de uma corrente política contemporânea: o anarquismo (o que talvez explique, em parte, que Sorel tenha se lançado, na época das Reflexões sobre a violência, à formulação de um elitismo anarcossindicalista).
II. “Elite” e burocracia
A Teoria das Elites nega, portanto, que a minoria dominante represente, na esfera política (processo de tomada das decisões macro-políticas), interesses coletivos previa- mente constituídos. Mas, como vimos anteriormente, isso não equivale a negar que a minoria dominante — chame-se ela “elite política”, “classe governante”, “categoria dirigente” ou “elite do poder” — possa, uma vez conquistado o poder político, definir interesses próprios, estritamente ligados à condição de detentora desse poder (ou seja: os interesses de preservação do poder conquistado e de fruição das vantagens materiais dele decorrentes).
Esse esclarecimento nos obriga a abordar uma nova questão. Se a Teoria das Elites supõe a disjunção do grupo politicamente dirigente e da classe economicamente dominante na sociedade contemporânea e sustenta, além do mais, que a minoria dominante age politicamente em função de interesses próprios, não estaria ela sugerindo a existência de um poder burocrático na sociedade contemporânea? Mais precisamente: não estaria contida na Teoria das Elites a tese de que é a burocracia de Estado, enquanto grupo social absolutamente independente da classe economicamente dominante e enquanto agente controlador do processo de tomada das decisões macro-políticas, quem detém efetivamente o poder político na sociedade contemporânea?
A única resposta possível a essa questão é a negativa; portanto, a enunciação dessa resposta nos permite continuar a caracterização — agora, evidentemente, de modo negativo — do núcleo básico da Teoria das Elites. A Teoria das Elites não é uma “teoria do poder burocrático na sociedade contemporânea”, já que ela se define justamente como um dispositivo teórico de ataque aos conceitos de Estado, burocracia de Estado e Estado burocrático.
Aqui estamos dando um passo adiante na caracterização da Teoria das Elites como um sistema de conceitos: o conceito de “elite política” (ou os de “classe governante”, “categoria dirigente” ou “elite do poder”) não se contrapõe apenas ao conceito de classe politicamente dominante contido no marxismo como também a qualquer conceito de burocracia estatal que siga o caminho encetado por Weber na análise do Estado moderno. Na Teoria das Elites, o Estado não é uma realidade, e sim, um dos grandes mitos políticos contemporâneos; o que significa, entre outras coisas, que o “poder” da burocracia estatal moderna — tese corrente no pensamento político contemporâneo —não passa de uma ilusão. Entenda-se: a Teoria das Elites não nega a possibilidade de alguns burocratas estatais — mais provavelmente aqueles situados no topo do aparelho —participarem do processo de tomada das decisões macro-políticas e de, conseqüentemen- te, integrarem a minoria dominante. Porém, isso não equivale a identificar a burocracia estatal, enquanto grupo funcional, com a “elite política”; e nem mesmo a supor que a burocracia estatal, no seu conjunto, é um dos elementos integrantes de uma “elite política” heteróclita. A rigor, a Teoria das Elites “secciona”, na análise do processo político contemporâneo, a burocracia estatal; ou seja, considera que a “elite política” atravessa a burocracia estatal, absorvendo tão somente alguns dos seus membros (cuja identidade não pode ser estabelecida teoricamente) e relegando consequentemente todos os de- mais à condição de “massa”.
Resumindo: na Teoria das Elites, o controle do processo de tomada das decisões macro-políticas não está nas mãos da burocracia estatal, e sim, da “elite política” (da qual podem participar até mesmo alguns membros da burocracia estatal). À vista disso, a Teoria das Elites não pode ser artificial- mente aproximada como fazem alguns comentaristas — da teoria weberiana do Estado burocrático moderno. É verdade que Weber se preocupou, teórica e politicamente, com a questão dos líderes políticos no Esta- do moderno, bem como com a do modo de relacionamento entre esses líderes e a burocracia estatal. Ocorre entretanto que os líderes políticos do Estado moderno, do modo como são caracterizados por Weber, não equivalem teoricamente à “elite política” delineada pela Teoria das Elites. Se, na sociologia política weberiana, a ação política daqueles é em última instância enquadrada pela burocracia estatal, na Teoria das Elites o poder político da “elite” não se sujeita a esse tipo de constrangimento, já que o Estado moderno e o poder da própria burocracia estatal não passam de mitos. É portanto desarrazoado buscar na obra de Weber uma “teoria da elite burocrática”, a menos que, nesse exercício interpretativo, a expressão “burocracia” seja esvaziada do seu sentido weberiano (o que seria, evidentemente, um procedimento absurdo). Em suma: uma “teoria da elite burocrática” só seria minimamente congruente no caso de um desses termos ser esvaziado do seu sentido teórico preciso. Isto é: ou a noção de “elite” se distanciaria do conceito contido na Teoria das Elites; ou, inversamente, a noção de “burocracia” se afastaria da matriz weberiana.
III. A crítica da Teoria das Elites
Uma vez reconstituída a Teoria das Elites, podemos passar à crítica das teses nela contidas, o que implica a crítica, por via in- direta, dos conceitos com que elas operam e das relações entre conceitos que elas estabelecem. Tal crítica começa pela indicação, ainda uma vez[2], da principal debilidade interna da Teoria das Elites: ela é visceralmente incapaz de cumprir a sua própria plataforma. Organizando-se como dispositivo de ataque à teoria marxista da classe dominante, a Teoria das Elites busca — sem lograr alcançá-lo — um modelo alternativo de explicação para a formação de um grupo politicamente dominante. Em que consiste essa incapacidade de cumprir a sua promessa? A Teoria das Elites não é débil quando atribui coesão interna à minoria já detentora do poder político. Essa coesão, afinal, pode ser explicada, ao menos numa primeira rodada do debate teórico, pela descoberta, por parte dos membros da “elite” política, das vantagens estritamente decorrentes de sua nova condição de detentores do poder político (a preservação do próprio poder político, recompensas materiais etc.). Na verdade, a debilidade reside no fato de que a Teoria das Elites, ao desconsiderar qualquer conexão entre ação política e interesses coletivos constituídos noutras esferas, mostra-se incapaz de explicar a formação de um grupo politicamente dirigente na sociedade contemporânea.
Para indicar de modo mais claro essa incapacidade, voltemos aos dois modelos explicativos contidos na Teorias das Elites. O primeiro modelo, oriundo da “Sociologia das organizações”, implica a afirmação de que a minoria social, por ser mais organizada, tende sempre a governar a maioria social. Entretanto, esse modelo não explica porque um grupo de homens, nada tendo em comum, tomaria a decisão consciente de se organizar como minoria politicamente ativa com vistas a dominar a maioria social. A partir de tal modelo, só se pode explicar a formação de uma minoria dominante pela emergência de uma consciência coletiva quanto à maior facilidade de organização de minorias. Ora, é difícil acreditar que tal consciência baste para induzir homens que não têm interesses comuns no presente a se organizar politicamente com o objetivo de se constituírem em comunidades no futuro.
O segundo modelo, oriundo da“Psicologia de massas”, implica a afirmação de que a “massa” (isto é, a maioria social) tende sempre a agir, no plano político, de modo irracional, o que faz com que ela seja dominada por uma minoria de homens detentores do monopólio das qualidades políticas (vontade de poder, força, astúcia). Ora, esse modelo não logra explicar porque a posse comum de tais qualidades induziria certos homens a se organizarem como grupo, no presente, com vistas a exercerem coletivamente, no futuro, o poder político. Na verdade, é perfeitamente plausível sustentar o contrário; isto é, que os detentores de qualidades políticas, não se congregando no presente em torno de interesses comuns, exerçam-nas uns contra os outros. Nesse caso, tal minoria, ao invés de fundar uma comunidade polarizada pelo objetivo da conquista do poder político, será dilacerada por um conflito permanente, o que engendra a possibilidade de instauração da “anarquia” nessa sociedade.
A crítica da Teoria das Elites começa, portanto, pela exposição dessa debilidade: ela se anuncia como uma alternativa ao economicismo marxista no terreno da teoria da “classe dirigente”; não dispõe, entretanto, de qualquer dispositivo teórico sólido que explique a gênese dos grupos politicamente dirigentes[3]. Porém, tal crítica não pode parar por aí, pois essa fraqueza interna é apenas o sintoma de uma insuficiência muito mais grave e profunda: o caráter falso da visão elitista do processo de tomada das decisões macro-políticas nas sociedades de classe em geral e na sociedade capitalista em particular.
É Herbert Marcuse quem, em Ideias sobre uma teoria crítica da sociedade, detecta a raiz dessa falsidade: o formalismo da Teoria das Elites. Ou seja, a tese da existência recorrente de minorias dominantes é defendida, na Teoria das Elites, de um modo formalista. O procedimento metodológico inerente a esse sistema teórico determina que, na análise dos processos macro-políticos, caracterize-se apenas o modo pelo qual são tomadas as decisões, e não o conteúdo de tais decisões (vale dizer, o teor substantivo da política efetivamente implementada). Mas especificamente: a Teoria das Elites busca definir“quem” toma as grandes decisões políticas com vistas a atribuir a esse agente — e nisso reside o formalismo da análise elitista do processo político — a condição de detentor do poder político. Ela não leva portanto em conta, na análise do processo político, o conteúdo das diferentes decisões, pois esse procedimento exigiria a investigação, imediatamente após, da eventual conexão entre esses conteúdos e certos interesses de grupo. Ora, tal investigação só poderia se concluir pela atribuição do poder político ao grupo social cujos interesses fossem prioritariamente concretizados pelas grandes decisões políticas; e não ao grupo de homens fisicamente participantes do processo macro-decisório. É claro que esse passo jamais pode- ria ser dado sem provocar a dissolução da própria Teoria das Elites.
Mas, para que se complete a crítica ao formalismo da análise elitista do processo político, é preciso denunciar a Teoria das Elites pelo fato de ela jogar” com o tema das “grandes decisões políticas” sem no entanto dispor de qualquer teoria sobre as decisões políticas fundamentais na sociedade contemporânea (ou em qualquer outro tipo de sociedade). E a ausência de uma teoria das decisões políticas fundamentais na análise política elitista não é ocasional; ambas são radicalmente incompatíveis. A definição de um elenco de decisões políticas fundamentais, num tipo de sociedade qualquer, choca-se com o formalismo da Teoria das Elites, pois ela exige a hierarquização das decisões — das fundamentais às subalternas — conforme o seu conteúdo. Só se pode, portanto, construir uma teoria das decisões políticas fundamentais quando se vai além da observação da mera forma do processo de tomada das grandes decisões políticas; e se passa à análise — rejeitada pela Teoria das Elites — do conteúdo das decisões políticas.
Além do mais, uma teoria que especifique o conteúdo invariante das decisões políticas fundamentais, num tipo qualquer de sociedade, tende a ser inevitavelmente parte integrante de uma teoria do Estado. Ora, a Teoria das Elites descarta como teoricamente irrelevante a problemática do Estado, e se define explicitamente como um “substituto” da teoria de Estado. Na Teoria das Elites, o Estado é o maior mito político contemporâneo; enquanto tal, tem a função de ocultar a realidade política essencial, isto é, a monopolização do processo de tomada das grandes decisões políticas, controlado invariavelmente por uma minoria política ativa. Rejeitando qual- quer variante de teoria do Estado (marxista, weberiana ou liberal), a Teoria das Elites se mostra incapaz de analisar o conteúdo da política de Estado na sociedade capitalista (ou em sociedades anteriores). Consequentemente, ela não se coloca a questão de uma eventual conexão entre o conteúdo da política de Estado e certos interesses sociais; e não pode portanto levantar a hipótese de que o poder político (em geral) e o poder de Esta- do (em particular) sejam exercidos por algum grupo social específico na medida em que ocorra uma convergência entre a política de Estado e os interesses desse grupo.
Para encerrar esta crítica, é importante mencionar um subproduto do formalismo da Teoria das Elites: a baixa operacionalidade desse sistema teórico no terreno da análise dos processos políticos. Ou seja, como a Teoria das Elites não especifica o conteúdo das decisões políticas fundamentais nem estabelece conexões entre tais conteúdos e certos interesses de grupo, ela é incapaz de estabelecer uma clara linha de demarcação entre o que é participação efetiva no processo de tomada das grandes decisões políticas e mera submissão aos agentes que monopolizam o processo. Essa dificuldade de operacionalizar a Teoria das Elites na análise política foi pressentida, mas não explicitada teoricamente, por Mosca (The Ruling Class). Sua resposta a essa dificuldade consistiu em pro- por o emprego, na análise política da sociedade contemporânea, de um continuum de poder, decomposto em “participação”, “influência” e “submissão”. Operando com esse continuum — destinado a substituir a dicotomia simples entre “elite política” e “massa” —, Mosca pondera que as classes superiores participam do processo macro-decisório (constituindo-se portanto em classe politicamente dirigente); os trabalhadores sindicalizados exercem influência sobre o processo macro-decisório, sem no entanto participarem dele; e a massa desorganizada se submete, pura e simplesmente, às decisões tomadas pela classe politicamente dirigente.
A nosso ver, a solução de Mosca para o problema da baixa operacionalidade da Teoria das Elites é ilusória, pois ela apenas trans- fere o problema para outro patamar, sem no entanto resolvê-lo. Ou seja: se a versão elementar da Teoria das Elites não indica como se pode estabelecer uma linha de demarcação, na análise política concreta, entre os detentores do poder político e a massa, tampouco as formulações de Mosca esclarecem como se pode diferenciar concretamente “participação” de “influência”, e esta, de “submissão”.
Assim, o problema da baixa operacionalidade da Teoria das Elites persiste, mal- grado os esforços de Mosca. É por isso que os pesquisadores contemporâneos situados no campo da Teoria das Elites se sentem obrigados a construir indicadores práticos que lhes permitam demarcar concretamente, na análise do processo macro-decisório, a “elite política” da “massa”. Por exemplo, um estudioso das “elites políticas locais” numa sociedade como a norte-americana pode estabelecer o controle efetivo dos tributos municipais ou da política de obras públicas como o critério prático de delimitação da “elite política” que opera nas municipalidades.
A construção de indicadores práticos pode ser uma “solução” para os pesquisadores, individualmente considerados; porém não o é para a Teoria das Elites, já que tal estratégia projeta invariavelmente esses estudiosos para o terreno da definição das decisões políticas fundamentais e, consequentemente, para o campo da teoria do Estado, cuja legitimidade teórica é contestada por aquela corrente. Isso significa que a únicas solução, encontrada pelos pesquisadores, para a baixa operacionalidade da Teoria das Elites tem sido, na prática, o deslizamente subreptício para um outro terreno teórico.
IV. Um caminho alternativo para a análise do processo político
Procuramos demonstrar acima que o modelo de análise política, proposto pela Teoria das Elites, é incapaz de apreender a dinâmica efetiva do processo político nas sociedades contemporâneas (de classe), ou em qualquer outra espécie de sociedade humana. É preciso, no entanto, reconhecer que a Teoria das Elites está amplamente difundida na Ciência Política contemporânea, a despeito dessa incapacidade. Devemos, portanto, pronunciar-nos sobre as possíveis razões dessa difusão.
Mencionem-se, em primeiro lugar, as razões de ordem fundamentalmente ideológica. Para os defensores do modelo capitalista de sociedade, é útil a dimensão apologética da Teoria das Elites; vale dizer, o fato de que ela apresenta o grupo politicamente dominante na sociedade capitalista como um conjunto de homens dotados de qualidades — isto é, uma “elite” —, só restando portanto à maioria da sociedade, intrinsecamente desprovida de tais qualidades (isto é, a “massa”), submeter-se ao seu poder. Além disso, também é útil, agora especificamente para os críticos contemporâneos de toda e qualquer proposta (reformista) da ampliação da democracia capitalista, a dimensão antidemocrática da Teoria das Elites; vale dizer, o fato de que ela recorre a argumentos conservadores, oriundos da “Sociologia das organizações” ou da “Psicologia de massas”, para dar fundamentação teórica a uma postura de reserva — mais ou menos explícita — com relação a processos de ampliação da democracia na sociedade contemporânea[4].
Existe, ao lado dessas razões de ordem ideológica, uma razão propriamente teórica para a grande amplitude da difusão contemporânea da Teoria das Elites. Tal razão foi apontada por Nicos Poulantzas em Poder político e classes sociais: a Teoria das Elites propõe uma solução — inadequada, é verdade — para problemas teóricos reais, que a teoria política marxista clássica não logrou resolver.
Faz parte, indubitavelmente, da tradição teórica marxista a tese segundo a qual, nas sociedades de classe, o exercício do poder econômico leva ao exercício, num momento cronologicamente posterior, do poder político. Ora, a Teoria das Elites considera, acertadamente, que essa tese é problemática; e essa postura crítica explica, em parte, o seu sucesso acadêmico. Porém, o erro desse sistema teórico está em se fixar exclusivamente na versão economicista clássica da tese do “exercício cumulativo dos poderes”, apresentando-a, na prática, como a única versão, possível para o marxismo, da tese do “exercício cumulativo dos poderes”.
Ora, essa tese comporta outra versão, viável dentro dos limites da teoria política marxista. Tal tese está indicada em textos de Nicos Poulantzas (Poder político e classes sociais) e Etienne Balibar (“Os conceitos fundamentais do materialismo histórico”). Trata-se da tese segundo a qual, no funcionamento das sociedades de classe (em geral) e da sociedade capitalista (em particular), estabelece-se uma relação da causação recíproca entre poder econômico e poder político, não havendo portanto nesse terreno específico — o da reprodução das sociedades de classe — um poder determinante e um poder subordinado. Essa tese traz como consequência a afirmação de que a classe economicamente dominante é sempre, igualmente, a classe politicamente dominante; e vice-versa. Isso ocorre porque, na perspectiva da “causação recíproca”, a dominação econômica de classe e a dominação política de classe são definidas, cada uma, como condição de reprodução da outra. Evidentemente, estamos longe, aqui, da afirmação unilateral segundo a qual a dominação econômica de classe tem sempre como efeito a conquista da dominação política de classe.
É interessante, neste ponto, notar que o próprio Poulantzas não extraiu todas as implicações da tese da “causação recíproca” entre poder econômico e poder político nas sociedades de classe. Mais especificamente: ao invés de propor a cumulatividade (sem determinação) das condições de classe economicamente dominante e de classe politicamente dominante, Poulantzas levanta teoricamente a possibilidade de que a classe economicamente dominante, no capitalismo, não seja a classe politicamente dominante. Portanto, Poulantzas admite, em contradição com a tese da “causação recíproca”, que ocorra no capitalismo a disjunção da dominação econômica de classe e da dominação política de classe. Ora, essa afirmação de Poulantzas é surpreendente, pelo menos, por duas razões. Em primeiro lugar, ele converge para a tese fundamental da Teoria das Elites, segundo a qual não há correlação invariante, na sociedade contemporânea, entre grupo politicamente dirigente e classe economicamente dominante. Essa convergência entra em contradição com a postura poulantziana de crítica à Teoria das Elites, já que ela não se estabelece a propósito de aspectos secundários, e sim, de uma tese crucial do sistema teórico elitista.
Em segundo lugar, é intrigante que Poulantzas tenha se deixado momentaneamente envolver pela aparência (ou seja, a disjunção da dominação econômica de classe e da dominação política de classe) de certos fenômenos políticos, típicos da sociedade capitalista, sobretudo porque a conceituação rigorosa desses fenômenos foi empreendida pioneiramente pelo próprio Poulantzas em Poder político e classes sociais.
Examinemos rapidamente tais fenômenos políticos. Em primeiro lugar, para que a dominação política capitalista se mantenha, não é necessário que a classe dominante ocupe diretamente — isto é, sem intermediários e através dos seus próprios membros — o topo do aparelho de Estado. Por isto, é possível a emergência, em certas conjunturas ou períodos, de uma classe detentora do aparelho de Estado, distinta da classe dominante (por exemplo, a pequena burguesia ou a classe média). A classe “detentora”, que exerce controle sobre o aparelho de Estado, é a classe social de que são egressos os ocupantes do topo do aparelho de Estado capitalista. Ela não se configura, só por esse fato, como classe dominante, pois só é dominante a classe social cujo interesse político geral é garantido pelo Estado; e só nesse caso se pode dizer que uma classe social detém o poder político e o poder de Estado. Isso significa, finalmente, que a classe detentora do aparelho de Estado não se constitui em classe dirigente ou elite política que detenha o poder político, ao mesmo tempo em que as classes proprietárias detêm o poder econômico.
Em segundo lugar, também não é necessário, para a manutenção da dominação política capitalista, que a classe dominante organize, ela própria, partidos políticos; e que os seus partidos políticos preponderem dentro do sistema partidário. Por isto, é possível a emergência, em certas conjunturas ou períodos, de uma classe reinante, distinta da classe dominante. A classe reinante — ou aquilo que Marx chama “a classe governante” — é a classe social que predomina na “cena política”; isto é, a classe social que organiza de modo direto e sem intermediários o partido político que prepondera no sistema partidário, assumindo assim o comando do sistema partidário na sua relação com o Estado capitalista. Frequentemente, em sociedades capitalistas concretas, a classe reinante é a pequena burguesia ou a classe média. É o caso, por exemplo, de certas sociedades capitalistas europeias nas fases em que o seu sistema partidário foi dominado pela social-democracia ou pelo movimento radical. A classe reinante não coincide necessariamente, portanto, com a classe dominante. Mas isso não significa — como poderia concluir o analista político polarizado pelas aparências — que tal classe se constitua em elite detentora do poder político, separado este do poder econômico exercido pelas classes proprietárias.
Fenômenos políticos como os anterior- mente mencionados — classe “detentora”, classe reinante — não podem ser captados pela Teoria das Elites, que se limita à observação da sua aparência e daí deduz, indevidamente, a disjunção do poder econômico e do poder político na sociedade contemporânea. A Teoria das Elites tem o mérito, no ponto de partida, de suscitar a análise morfológica do processo político; porém, apresenta o defeito, na reta de chegada, de propor tão somente uma visão formalista do processo político. Já a teoria política marxista em processo de renovação, ao aceitar o repto da Teoria das Elites, pode chegar, no próprio plano morfológico de análise, à diferenciação da classe dominante, classe detentora do aparelho de Estado e classe reinante (os agentes coletivos que, respectivamente, exercem o poder político, ocupam o topo do aparelho de Estado e prevalecem no sistema partidário).
Chegamos desse modo — e essa é a conclusão de nosso artigo — à diferença básica existente entre a Teoria das Elites e a teoria política marxista renovada. A análise puramente morfológica do processo político é o limite além do qual a Teoria das Elites não pode avançar; caso o faça, ela estará se dissolvendo e se convertendo noutro sistema teórico. Já a teoria política marxista em processo de renovação pode incorporar, até mesmo por “pressão” da Teoria das Elites, a análise morfológica do processo político; mas jamais a definirá como tarefa exclusiva do analista político. Ao contrário: a sua plataforma consiste em integrar os resultados dessa análise morfológica à análise substantiva do processo político, que é, em última instância, análise do caráter de classe do poder político. Nessa medida, a comparação entre os dois sistemas teóricos nos permite, independentemente da avaliação de sua falsidade ou justeza, estabelecer o contraste entre a limitação de um (Teoria das Elites) e a abrangência de outro (teoria política marxista renovada), na análise das sociedades de classe e, em particular, da sociedade capitalista.
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Notas
[1] Esclareça-se desde logo que não estamos lidando aqui com a acepção convencional — sem dúvida, mais ampla — da expressão “cumulativo”; e sim, com a acepção — mais restrita — que essa expressão progressivamente assumiu no curso da luta elitista contra a teoria política marxista (ou seja: correlação entre os exercícios de um e outro poder).[2] Dizemos: “ainda uma vez”, pois essa indicação foi feita por praticamente todos os críticos da Teoria das Elites.
[3] Algum cientista político que se oriente, na análise do processo histórico, pela problemática das estruturas (econômica, jurídico-política) poderia sustentar que essa desconsideração para com a gênese das minorias dominantes é teoricamente correta e, portanto, não pode servir como instrumento de crítica à Teoria das Elites. A nosso ver, entretanto, esse tipo de ponderação é desarrazoado, pois ele não leva em conta que é a Teoria das Elites, e não os seus críticos (ou, pelo menos, não necessariamente todos eles), que aponta para a necessidade de construção de uma teoria do agrupamento político que se constitua numa efetiva alternativa à teoria marxista da classe dominante.
[4] É interessante, a esse respeito, lembrar que Mosca, quando não defende a implantação de Estados “fortes” ou “cesaristas” (uma decorrência inevitável, a seu ver, da crise das democracias contemporâneas), revela a sua preferência política por um “sistema representativo”, cujo aspecto central não é o funcionamento efetivo da representação política, e sim, a submissão da classe governante a um “pluralismo de influências”, emanadas de diferentes forças políticas (dinheiro, trabalho, ciência, religião etc.). Talvez seja desnecessário chamar a atenção para o fato de que o “pluralismo” de Mosca pode se concretizar através da implantação de um Estado corporativo, destituído de qualquer caráter democrático-representativo. Recorde-se também que Mannheim preferia explicitamente os Estados censitários do século XIX às democracias “ampliadas” e “populistas” — vale dizer, fundadas no sufrágio universal — do século XX. Quanto a Schumpeter, são conhecidas a sua concepção elitista de democracia, bem como a sua falta de entusiasmo quanto a uma ampla participação popular no processo político.
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Bibliografia
ARON, R. (1964). Luta de classes. Lisboa, Editorial Presença.
ARON, R. (1966). Democracia e totalitarismo. Lisboa, Editorial Presença.
BALIBAR, E. (1968). “Sur les concepts fondamentaux du matérialisme historique”. In: ALTHUSSER, L. & BALIBAR, E. Lire le Capital. Paris, Maspero, vol. II.
DAHL, R. A. (1970). A moderna análise política. Rio de Janeiro, Lidador.
MANNHEIM, K. (1957). Ensayos de sociologia de la cultura. Madrid, Aguilar.
MANNHEIM, K. (1962). O homem e a sociedade. Rio de Janeiro, Zahar.
MARX, K. (1965). Les luttes de classes en France7Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. Paris, J. J. Pauvert.
MARCUSE, H. (1972). Ideias sobre uma teoria crítica da sociedade. Rio de Janeiro, Zahar.
MOSCA, G. (s/d). The Ruling Class7Elementi di Scienza Politica. New York/Toron- to/Londres, McGraw-Hill.
POULANTZAS, N. (1971). Pouvoir politique et classes sociales. Paris, Maspero.
SCHUMPETER, I.A. (1961). Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura.
SOREL, G. (1930). Réfiéxions sur la violence. Paris, Marcel Riviére.
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Resumo: O objetivo deste artigo é reconstituir o “núcleo duro” da Teoria das Elites para, a seguir, fazer sua crítica e sugerir um caminho alternativo para a análise do processo político.
Palavras-chave: elite, massa, poder, Estado, classe dominante.
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SAES, D. “Uma contribuição à crítica da Teoria das Elites”. In: Revista de sociologia e política, n. 3, 1994, p. 7-19.
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